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Os donos do jogo

Uma das profissões mais ingratas do mundo certamente é a de árbitro de futebol. Meu pai sempre me conta histórias curiosas dos apertos que os “senhores do apito” passavam antigamente, na época em que as bolas ainda eram de capotão, as travas da chuteira eram de pregos e os próprios juízes eram enfeites, marionetes controladas pelo público – e garruchas – local.


Marcelo Souza

Ainda nos tempos de hoje, os árbitros sofrem. Solitários, condescendência é a última coisa que eles podem esperar de alguém. São alvos diretos dos dois pelotões inimigos no campo de batalha. São, aos olhos do perdedor, como dizia Nelson Rodrigues, “juízes larápios” – eufemismo deste que vos escreve, a realidade é bem pior.

Mas por que gastar tantas linhas para falar de futebol em uma revista de poker? Bem, existe uma profissão que, ás vezes, pode ser tão ingrata – vejam que uso a palavra “ingrata” não de maneira pejorativa, mas no sentido de reconhecimento (ou falta dele) – como a de um árbitro de futebol. Estou falando dos dealers. Isso mesmo, os “donos da mesa de poker”.

Ao contrário do árbitro, por melhor que seja o dealer, ele acabará desagradando um ou mais jogadores na mesa. Se o baralho traz um daqueles três outs no river, a culpa é do dealer. Se você não recebe um par de Ases há quase duas horas, a culpa é do dealer. Se você recebe dezenas de pares pequenos, consecutivamente, e não trinca nenhum, adivinhe de quem é a culpa?

Infelizmente, o field dos torneios aos vivos ainda é composto por pessoas que associam a sua “má sorte” a quem está distribuindo as cartas. No último LAPT de São Paulo, após a eliminação perto da bolha, um jogador, visivelmente irritado, se dirigiu ao dealer de sua mesa e lhe deu dois fortes tapas nas costas. Situação que não é comum, mas casos semelhantes acontecem mesmo com profissionais reconhecidos nacionalmente. “Apesar de nunca ter sido agredido fisicamente, já escutei os mais diversos tipos de xingamentos na mesa durante os meus oito anos de profissão. Hoje, são casos mais raros”, conta Nilton Batista Vieira, o “Tininho”, um dos nomes mais conhecidos do Brasil quando o assunto é distribuição de cartas.

Dealers como Tininho são exceções à regra. Não em questão de qualidade, já que os dealers no Brasil estão entre os melhores do mundo – palavras não minhas, mas de renomados profissionais e amadores estrangeiros que já passaram por aqui –, mas em questão de respeito e reconhecimento nas mesas. Daniel “Gatão” é um desses casos. Com 35 anos, cinco deles dedicados à profissão, sua presença é certa em LAPTs, BSOPs e outros grandes eventos do Brasil. Sem nunca dizer não para uma oferta de trabalho, “Gatão” tem propriedade para falar sobre os rumos da profissão: “O poker evolui muito. Desde a forma do jogador se portar na mesa até a instituição como um todo. Meu sustento vem da distribuição de cartas e acredito que a tendência é só melhorar. Assim como outras profissões, que antes não eram reconhecidas por lei, o profissional, dealer, em breve, também terá amparo legal”.

Dar cartas, principalmente em torneios, pode ser tarefa complicada. A chance de se deparar com um ou mais jogadores inconvenientes na mesa é grande. A jornada de trabalho também é exaustiva. Torneios como o BSOP duram quase uma semana, com eventos em andamento por até 14 horas. Além disso, não só no Brasil, dealers de torneios, geralmente, têm que arcar com a própria hospedagem, o que pode tornar a vida de profissionais de outros estados ainda mais difícil. Esses são alguns dos motivos por nomes competentes como o de Marcos “BH” (nome modificado a pedido do entrevistado) permanecerem no anonimato.

Marcos dá cartas em jogos privados de cash games em Minas Gerais há quatro anos. “Muitas vezes, o que eu ganharia distribuindo cartas por três ou quatro dias em um torneio, eu ganho em uma única gorjeta em um jogo mais baleado”, conta. Sem revelar nomes, ele diz não são poucos os figurões apaixonados pelo esporte em Minas. Políticos, empresários e até jogadores de futebol estão entre os que já receberam cartas de suas mãos. “Dependendo da turma, os potes chegam facilmente aos seis dígitos. Nesses jogos as gorjetas são bem generosas”, conta Marcos que, mesmo dividindo as gorjetas com os colegas que fazem o revezamento na mesa, já chegou a receber mais de R$ 10.000 em uma única noite. Graças à profissão, entre outros bens, ele já tem, quitados, carro e apartamento.

Mas quando se envolve em jogos como os que Marcos participa, é preciso ter muito cuidado, afinal, quando ego e dinheiro se misturam, as coisas podem sair do controle – principalmente quando as quantias são exorbitantes. “É preciso ter muito jogo de cintura e simpatia, e colocar aquela velha máxima do comércio na cabeça: ‘o cliente tem sempre razão”, adverte. “Certa vez, dois jogadores se envolveram em um pote de quase 40 mil antes do flop. Um tinha par de Reis e o outro, A-K. Não preciso dizer que bati o Ás no turn. O cara do K-K xingou até a 15ª geração da minha família. Minha vontade era de enfiar um murro nas fuças do sujeito, mas sangue frio é essencial nesta profissão”, revela Marcos.

Ao contrário de outras profissões, aqui, as mulheres são mais valorizadas. A presença feminina na mesa ajuda a inibir alguns comportamentos inadequados e, nas mesas de cash, pode proporcionar gorjetas ainda maiores para o staff. As brincadeiras acerca da beleza e cantadas são tiradas de letra. “Desde que não atrapalhe o bom andamento do jogo, basta dar um sorriso e continuar agindo normalmente. Em um caso ou outro é necessário chamar o floor, mas não é muito frequente”, disse Sarah Lynn em entrevista à Card Player em 2011.

Nos últimos anos, a procura pela profissão tem sido tão grande que centros de formação para dealers foram criados por todo o País. Um dos pioneiros no ramo foi Joubert Camardo, o “Careca”. Por mais de dois anos, ele chefiou a equipe de dealers do BSOP e pode ser considerado um dos responsáveis pelo sucesso dos brasileiros no ramo. “Eu me sinto muito orgulhoso pelo nível de excelência que alcançamos hoje. Muitos dos principais dealers do Brasil passaram por minhas mãos. Eu sou bastante exigente com as equipes que coordeno. Exijo o padrão, exijo postura e o resultado sempre é satisfatório”, revela Joubert.
Homens ou mulheres, os dealers são peças fundamentais no poker. Um bom jogo depende de um bom dealer. Por trás do sucesso de grandes torneios está também uma grande equipe. Valorizar e respeitar estes homens do “Assento 0” vai muito além da questão moral. Lembre-se que para que trabalhos sejam bem executados é preciso, antes de tudo, um ambiente harmônico e com as melhores condições possíveis para o profissional – condições, estas, que só serão ideais com a colaboração de cada um dos sete, oito ou nove jogadores da mesa.

OS DEALERS NA MAIOR SÉRIE DE TORNEIOS DO MUNDO
Nenhum evento no mundo reúne tantos dealers quanto a World Series of Poker (WSOP), realizada anualmente em Las Vegas, no cassino Rio. Segundo Jack Effel, vice-presidente da International Poker Operations e diretor de torneios da WSOP, a série começa com um efetivo de cerca de 1.000 dealers. Ele diz que o mais importante é ter funcionários o suficientes para quando o Main Event, maior torneio do mundo, começar. “Todo ano, perdemos de 15% a 20% do pessoal durante as duas primeiras semanas da WSOP. Então, sempre, antes da série começar, contratamos uns 400 novos dealers. Dos 700 a 800 dealers que terminam a série conosco, quase 600 voltam no próximo ano”, revela.

O salário oferecido é de US$ 6.85 por hora trabalhada – mais gorjetas (cash game) e o que eles chamam de “toke”, a porcentagem da prize pool destinada ao staff. Torneios como o Main Event e o Poker Players Championship, cujos buy-ins são de US$ 10.000 e US$ 50.000, respectivamente, o “toke” é de 1.8%. Em 2009, por exemplo, a premiação do Main Event chegou a quase US$ 65 milhões, o que rendeu ao staff cerca de US$ 1.1 milhão – um extra de US$ 1.100 para cada um.

O processo para entrar na equipe de dealers da WSOP é bem rígido. Obviamente, se eles vão contratar alguém que trabalho no Belaggio ou no Venetian, não é necessário nenhum tipo de teste. Para os outros, há uma entrevista por telefone (portanto, inglês fluente é essencial), em que são feitas perguntas sobre as modalidades mais complexas da WSOP – pot-limit Omaha, seven-card stud eight-or-better e 2-7 triple draw. Aos entrevistados são dadas notas de 0 a 100. Se a nota é abaixo de 70, eles são dispensados. Entre 70 e 80, é agendada uma entrevista ao vivo. Acima de 80, a contratação é imediata. 




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