EDIÇÃO 10 » MISCELÂNEA

Halloween Poker


George Queiroz

O mecânico me disse que era preciso trocar a correia dentada do motor do carro, porque já estava velha e podia arrebentar a qualquer tempo. Eu disse a ele que na próxima visita faria isso e que verificasse para mim apenas o que eu havia pedido. Bom, a gente sabe que é costume nas oficinas inventar um probleminha aqui, outro acolá, que é apenas para aumentar o valor da conta. Eu tinha ido ali para trocar uma lanterna, veja só, e o sujeito vem descobrir um problema no motor, essa é boa.

Mas, quisera eu ser menos desconfiado e acreditar na boa-fé das pessoas. Precisei ir até o interior do Estado a serviço, e acabei demorando mais do que gostaria. Acabei voltando já de madrugada, quase uma hora da manhã, a estrada estava um breu danado e felizmente eu havia trocado a lanterna que havia me deixado na mão na última viagem. Eu represento um laboratório farmacêutico e preciso me deslocar pelo Estado inteiro todos os dias para mostrar os meus medicamentos. O meu carro não era velho, mas vez ou outra eu precisava levá-lo ao mecânico para ver se estava tudo certo. No momento em que me lembrei do mecânico, escuto um barulho: “bam!”. Era a correia arrebentando e meu motor me dizendo adeus.

Como desgraça pouca é bobagem, parei justamente em um trecho da estrada onde só havia mato de ambos os lados. Ia ligar para a seguradora, mas até chegar alguém eu ia ter que esperar muito tempo. Mas, paciência, é o castigo por eu ter desconfiado do mecânico. Peguei o celular para avisar a seguradora, porém não conseguia sinal. Estava fora de área. Suspirei fundo e sentei no capô do carro, para aguardar algum perdido que passasse por aquelas horas da noite ali e quem sabe pegar uma carona.

Já esperava por quase uma hora, e ainda não havia aparecido ninguém. Também, pudera, eu devia ser a única pessoa na região que não estava dormindo uma hora dessas. Estiquei a visão naquele pretume pra ver se enxergava algum farol vindo lá de longe na estrada, mas não via nada. Porém, consegui enxergar no meio do mato um ponto de luz a cerca de quinhentos metros de onde eu estava. Devia ser uma casa. Se tinham luz, provavelmente possuíam telefone, pensei com meu otimismo, talvez me deixassem ligar para a seguradora. Decidi ir até lá, afinal a outra opção, que era esperar alguma alma bondosa passar por ali era igualmente desesperançosa. Peguei minha lanterna no porta luvas e me meti por uma trilha que encontrei no acostamento.

De onde meu carro estava, não se percebia que a trilha era boa de se caminhar, pois no início me imaginei abrindo picadas a facão, que por sinal, havia trazido junto da lanterna. Não precisei do facão, enfiei o troço na cintura e prossegui com a caminhada. Conforme me aproximava, vi que a luz realmente era de uma casa e espantei da cabeça o remorso de acordar aquele pessoal tão tarde da noite. Já devia ser perto de duas horas, e, pela quantidade de luzes que eu via acesas, certamente havia alguém acordado ali, embora eu não ouvisse nem um barulho além dos pios das corujas, que pareciam querer me anunciar.

Cheguei finalmente à casa, que tinha uma aparência muito mal cuidada. As janelas de madeira rangiam ao balançar-se ao sabor do vento, não compreendia como se podia dormir com aquele rangido. Era pequena, e assim, vista de fora, podiam-se calcular uns quatro cômodos, no máximo. Em todos eles, as luzes estavam acesas. Subi os dois degraus que davam acesso à porta da frente e bati levemente. Logo em seguida, uma voz de homem disse bem próximo à porta: - Quem é?

- Desculpa incomodar, meu nome é Felipe, e estou com um problema com meu carro. Gostaria de saber se vocês me deixariam usar o telefone para que eu possa ligar para o reboque. Meu celular não pega aqui.
Passaram-se uns bons minutos de silêncio. Provavelmente, os habitantes da casa estavam a confabular sobre a permissão de abrir a porta a um estranho, no meio daquele mato, àquela hora da noite. Era compreensível. Algum tempo depois ouvi o rangido da porta se abrindo e pude ver alguém através da fresta. Um olho confirmou por aquele espaço se eu parecia ameaçador e finalmente, um homem pequeno abriu toda a porta.

- Pode entrar, senhor. O telefone está ali no canto.

Pedi licença e entrei naquele recinto. Uma lufada de ar carregado de poeira e ácaros fez arder meus olhos, mas tentei ser educado e não demonstrar meu incômodo. O homem pequeno que me abriu a porta apontou com um sorriso a direção do telefone e me deixou à vontade. Observei que havia mais três homens em uma mesa, que jogavam poker junto com o homem pequeno. Perto deles, uma senhora muito velha balançava-se em uma cadeira, fazendo os rangidos que lá de fora eu supus ser das janelas de madeira. Sorri para eles agradecido e fiz minha ligação. A telefonista que me atendeu me alertou que o reboque demoraria cerca de três horas para chegar até onde eu estava, o que me deixaria por ali até perto de amanhecer. Tentei negociar com ela a possibilidade de ser atendido com mais urgência, mas aparentemente era impossível, três horas era a distância do reboque da cidade mais próxima de onde eu estava. Agradeci, dei de ombros e finalizei minha ligação.

Ia já me despedindo do pessoal da casa, quando o homem pequeno me disse:

- Pelo que eu entendi, o senhor vai precisar esperar até amanhecer, não é mesmo? Que tal aguardar aqui conosco?

- Ah, de jeito nenhum, eu não quero incomodá-los...

- Não vai ser nenhum incômodo. Como pode ver, estamos jogando poker. Só terminamos nossa partida perto de amanhecer. É melhor do que o senhor aguardar lá fora, ao relento.

Ele tinha razão. Finalmente, aceitei a oferta e me sentei no sofá. O homem pequeno voltou à mesa e de lá me perguntou:

- Está familiarizado com o jogo?

- Com o poker? Ah, sim, eu costumava jogar muito isso... ultimamente, ando sem tempo, mas...

- Porque não se junta a nós?

O convite era tentador, porque eu realmente gosto de poker, e ainda mais porque aquele sofá estava cheio de poeira e minha alergia já me fazia coçar o nariz. Sentei à mesa e sorri para os outros jogadores, que não me devolveram a gentileza. Eram dois homens enormes e idênticos, certamente gêmeos, e um adolescente sujo e com a roupa toda rasgada. Tinha uma cicatriz no canto da boca que lhe dava um ar um pouco zombeteiro e assustador ao mesmo tempo. Todos permaneceram mudos, exceto o homem pequeno, que era muito simpático:

- Esse são Júnior e os gêmeos Cosme e Damião. São meus irmãos. Aquela ali é Ilma, nossa avó. Ela finge que não nos ouve, mas experimente falar no Getulio Vargas, para ver só...

Assim que o homem pequeno falou o nome do ex-presidente, a velha virou o rosto em nossa direção e sussurrou com uma voz medonha:

- Aquilo sim é que era um homem honraaaaaado... Getúúúúúúúlio...

- Viu só? – piscou para mim o homem pequeno. Meu nome é Arnaldo, seja bem vindo à nossa mesa.

- Vocês estão jogando a dinheiro? – perguntei. Temo não ter mais nenhum aqui na carteira.

- Isto é um problema. Infelizmente, sempre apostamos algo de valor em nossos jogos. O senhor não tem consigo algo que possa apostar?
Eu sorri sem jeito e disse: - Tudo o que tenho são remédios. Sou representante de um laboratório farmacêutico.

- Ah, ótimo! Tem analgésicos? Nosso irmão Joaquim, que está no quarto dormindo, sofre com crises de dores horríveis. Acorda no meio da noite gritando às vezes, temos sempre que lhe dar algo para dor. Como não há farmácias por perto, muitas vezes precisamos lhe dar álcool, para que os gritos diminuam.

- Jesus, vocês não o levam ao hospital?

O Junior parecia o mais impaciente, remexia-se na cadeira o tempo todo. Quando não suportou mais, resolveu reclamar com uma voz agudíssima: - E então, não vamos jogar? Eu quero jogar! Não vamos jogar? Parem com essa conversa e vamos jogar!...

Peguei os analgésicos que eu tinha no bolso e depositei na mesa: - Aqui comigo, só tenho esses, mas posso pegar mais no carro depois.

- São suficiente. Coloque aqui no entulho – disse-me, dando uma piscadela.

- Getúúúúúlio... aquilo é que era um homem honraaaaaado...

- Silêncio, vovó... Eu disse entulho!

- Honraaaaaado!

Entulho era como ele chamava uma pilha de cacarecos num canto da mesa, que pelo que me pareceu, era o que estava sendo apostado naquela noite. Já de início, percebi que ali não habitavam pessoas normais, mas agora já tinha certeza de que estava tratando com malucos. O Arnaldo devia ser o sujeito que tomava conta de todos aqueles doidos, coitado.

O jogo começou, finalmente. Recebi minhas fichas, como todos na mesa, e a seguir as cartas foram dadas. Eu era o big blind, e portanto o último a falar pré-flop. Recebi A8 suited. Porém, mal as cartas foram entregues, o Junior ao meu lado já foi de all-in.

- All-in! All-in! All-in!

Os gêmeos gigantes pagaram o all-in logo em seguida, o Damião o fez, inclusive, sem ver suas cartas. Arnaldo pagou também e todos na mesa me fuzilaram com os olhos. Não havia o que fazer, fui de all-in também e esperei para ver no que dava. Quando viraram-se o flop, o turn e o river, o Junior ao meu lado, que tinha 2 e 3, fez um full house, com trinca de 2. Diabos, o moleque foi de all-in pré-flop com 2 e 3, mas que casa de malucos!

- Eu ganhei, rá rá rá, ganhei, é tudo meu, rá rá rá – sussurrava com aquela voz agudíssima, e abraçou-se logo com o entulho, nos olhando com o canto dos olhos como se tentasse proteger seu prêmio de nós. O Arnaldo me deu um leve tapinha nos ombros e uma piscadela, como que para que eu aceitasse a brincadeira numa boa e cumprimentou o irmão:

- Parabéns, você ganhou todo este entulho!

- Honraaaaado...

- É meu, rá rá rá, eu ganhei, ganhei, é tudo meu, rá rá rá.

Eu, que já havia percebido o espírito da coisa ali, dei meus cumprimentos ao Junior também:

- Muito bem jogado, Junior. Eu achava que podia pagar porque tinha um kicker alto, mas veja só, você me pegou, rapaz! – Sorri e continuei - Mas também, eu devia imaginar logo que daria nisto, recebi a mão do homem morto...

Neste momento o pequeno Arnaldo deu um murro na mesa e ficou vermelho, com os olhos quase saltando das órbitas. Jogou longe tudo que estava ao seu alcance e gritou na minha direção, possesso:
- Onde você está vendo um morto aqui? Me diga, onde tem alguém morto aqui?

Eu levei um baita susto e fiquei ainda mais apavorado quando uma série de gritos começou no quarto onde disseram estar o outro irmão, o Joaquim:

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhh!!! Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrgggghhhhh!!!

- Vamos, seu desgraçado, me diga! Eu quero ver onde tem é que tem um morto nesta casa!

Os gêmeos gigantes viraram a mesa e vieram em minha direção. O Junior começou a chorar por causa de seu prêmio, que havia se espalhado por toda a sala. O Arnaldo esperneava e ficava cada vez mais vermelho de raiva. E os gritos no quarto não cessavam. Acuaram-me contra a parede e quase me urinei todo de medo. Ao me encostar ao canto da sala, senti o facão que havia colocado na cintura pressionar-me a pele; saquei-o rapidamente e o apontei na direção dos outros três homens:

- Quietinho, todo mundo quietinho... estou de saída e ninguém vai se machucar, ok? – Eu tentava dizer isso com a voz firme, mas eu meu queixo tremia mais que gelatina.

- Não seu desgraçado, eu quero que você me mostre onde é que tem um morto aqui nesta casa! Vamos, me diga!

Fui tateando a parede até encontrar a maçaneta da porta. Abri e me meti por ela, tropeçando nos degraus e caindo. Tentei me levantar e saí me arrastando pelo mato a fora. Atrás de mim, escutava os passos pesados dos gêmeos me perseguindo.

- Não deixem que ele escape daqui, esse caluniador! Não há nenhum morto aqui, está me ouvindo? Venha cá me mostrar onde é que você viu um morto aqui!

O Junior chorava pelo entulho perdido, a vovó ficava repetindo honraaaaado, mas eu não conseguia pensar em nada que não fosse escapar dali com vida. Enfiei-me pelo meio dos matos e corri até não ouvir mais som nenhum. No caminho, perdi minha lanterna e o facão. Encontrei uma pedra grande e fiquei escondido sob ela, com a mão no peito tentando abafar o barulho das batidas do meu coração, que se devia ouvir lá da rodovia. Até que amanheceu, e como já conseguia enxergar alguma coisa à frente, decidi caminhar até a rodovia. Meu carro ainda estava lá, o reboque chegou quase que junto comigo e por pouco não dou um abraço no motorista, de tão feliz que estava por vê-lo. Lá longe, pude ver o casebre, já com todas as luzes apagadas, e daqui parecia mais ainda uma casa abandonada. Dentro do reboque, suspirei fundo, aliviado, e jurei nunca mais duvidar do meu mecânico.




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