EDIÇÃO 7 » MISCELÂNEA

O Caso do Bracelete de Ouro - Parte II


George Queiroz

No táxi a caminho para a Mansão Creamcheese, eu resolvi rever minhas anotações para o caso. Um delinqüente estava atacando sistematicamente o patrimônio de Arthur Creamcheese, deixando cartas de baralho antes de cometer os crimes. Sua filha Susan me contratou para descobrir quem era o agressor e detê-lo antes que surja uma anunciada nova carta: um rei de ouros. Miss Susan Creamcheese até antecipou o provável quinto alvo do bandido: o bracelete de ouro que seu pai ganhara em um torneio de poker. Na lógica dos manuais dos detetives particulares não faz muito sentido avisar antes de cometer o crime. O comum seria criar uma assinatura estilizada para dar um ar mais racional, mais intelectual ao criminoso. Mas não era o que acontecia com as cartas de ouros, não se assina assim uma obra antes de concluí-la. Malditos amadores...

Provavelmente, não se tratava de um bandido perigoso. Procurei dentre minhas anotações a lista dos suspeitos que eu oportunamente copiara do meu manual dos detetives particulares. O mordomo, certamente... Susan disse que ele foi o primeiro a associar as cartas que surgiam aos crimes subseqüentes. Eu precisava investigá-lo cuidadosamente, já que ele aparecia no topo de minha lista. A seguir, viriam os herdeiros. Pelo que eu pude descobrir, Susan era filha única, portanto, herdeira de toda a fortuna do pai. Assim sendo, por que diabos ela destruiria o próprio patrimônio? Não, não fazia muito sentido. Além do mais, aqueles lábios carnudos, o colo róseo e provocante, o olhar perturbador.... tudo isto destoava do estereótipo de um criminoso. Maldito mordomo, comecei a suspeitar dele antes mesmo da linda Susan narrar-me sua história.

Do banco traseiro do táxi pudemos ver, conforme nos aproximávamos, algumas viaturas da polícia paradas diante da sombria Mansão Creamcheese. A doce Susan devia estar mesmo assustada, para não contar apenas com a minha proteção. Os investigadores coletavam pistas inúteis em todos os lugares da casa e sequer notavam a minha presença conforme passava ao lado deles. Felizmente, eu não ando armado, assim, se eles decidissem me revistar eu não teria problemas. O chefe de polícia Hogan me ignorava com o desdém costumeiro, até que a fumaça do meu cachimbo o incomodou. Interrompeu o debate com um dos investigadores e veio sacudindo as mãos em minha direção:
- Ei, ei, cuidado! Isto aqui está isolado como local de crime!

Eu estanquei o passo. O chefe Hogan se aproximou e me analisou de cima a baixo, com o indicador direito sob o bigode.
- Eu conheço esta cara fina...
- Hercule Smith, caso não se lembre do meu nome. Eu sou detetive particular...
- Sim, sim, lembrei-me agora. Já tive... já tive queixas a seu respeito algumas vezes em meu departamento. Hogan ainda permaneceu uns segundos em sua pose inquisitória, mas logo voltou a sacudir as mãos me expulsando: - Anda, anda, fora! O que faz aí parado?
- Mr. Smith é meu convidado, chefe Hogan – interveio em meu favor minha angélica Susan.

Susan apareceu com seu ar dominador, carregando todo o ambiente. Trajava um belo vestido, porém estava vestida com mais simplicidade do que na véspera, quando apareceu em meu escritório. Mas simplicidade não era um adjetivo que se aplicava àquela mulher.
- Chefe Hogan, eu agradeço muito os seus préstimos, mas creio que não há mais nenhuma pista que seus inspetores possam recolher nesta casa. Assim, gostaria que o senhor e seus homens se retirassem.
- Miss Creamcheese, nestas horas, todo, todo detalhe precisa ser cuidadosamente analisado. Se, se me permite, eu gostaria...
- Exatamente isto, chefe Hogan, eu não permito. Sei que meu pai foi seqüestrado, mas os senhores estão aqui desde esta madrugada, e creio eu que mereço um descanso. Confio na Scotland Yard, porém acredito que a investigação já deveria passar da fase de coleta de provas, não?
- Como, como quiser, Miss Creamcheese. Entraremos em contato. Hogan apertou seu chapéu na cabeça e saiu tangendo seus inspetores do local. Permaneci parado em silêncio, até ouvir os ruídos das portas batendo e dos carros partindo. Susan seguiu em direção ao escritório de seu pai sem me fazer nenhum sinal, mas pela sua postura, percebi que ela desejava que eu a seguisse.

No escritório ela me indicou uma poltrona e sentou-se na beira da escrivaninha. Ali se encontrava também o mordomo, sentado folgadamente na poltrona ao meu lado. Fez ao me ver uma cara enojada, como se não estivesse satisfeito com minha presença. Realmente, um amador este mordomo. Sendo o suspeito inicial da minha lista, deveria tentar ao menos conquistar minha simpatia. Devolvi a mesma cara de nojo e voltei-me a Susan:
- Disse ao Hogan que seu pai foi seqüestrado.
- Bebe alguma coisa, Mr. Smith?

Susan mantinha-se tranqüila demais para alguém cujo pai estava em apuros. Diante de mim, ela conseguia desfazer aquela imagem sedutora que eu alimentei em minha mente durante o percurso até a mansão.  Respondi-lhe prontamente: - Sim, um bourbon, por favor. Susan permaneceu imóvel, mas o mordomo ao meu lado levantou-se e saiu da sala. A seguir, Susan retirou um exemplar de Um Estudo em Vermelho da estante e dele sacou uma carta de baralho, o fatídico rei de ouros, jogando-o em minha direção:
- Esta carta estava sobre a cama do meu pai, onde ele deveria estar dormindo. Não ouvimos nenhum ruído. Fui apenas verificar se papai estava bem, mas encontrei o quarto vazio.
- Por que não entregou a carta aos policiais? Quero dizer, este é um ponto que não entendo. A senhorita foi ao meu escritório solicitar meus serviços, e elogiou a minha discrição. Contou que havia notificado a polícia sobre os crimes, mas não lhes entregou as cartas, que a mim parecem que são as únicas evidências desta série de acontecimentos. Então, por que fez isto e em que minha discrição pode ajudar neste caso?

Ao ouvir minha pergunta, Susan voltou a se acomodar na beira da escrivaninha. Respirou fundo, soltou um suspiro que pareceu-me soar “Mr. Smith”... Não falou nada, levantou-se da mesa e sentou-se na poltrona por trás da escrivaninha. Maldição, daqui eu podia lamber-lhe com os olhos as pernas que, apertadas contra a madeira da mesa, mordiam na frente o vestido de forma a delinear mais e mais aquela bela silhueta. Eu já acreditava que Susan Creamcheese desejava me seduzir, mas talvez pela aparição da figura sinistra do mordomo, que entrava no escritório com duas bebidas, tenha se intimidado. Ele veio sacudindo a bandeja para o meu lado de maneira displicente até para um aprendiz de garçom. Peguei meu drinque sem olhar em sua direção, afinal não queria que o mordomo se desse conta de minhas suspeitas. Para Susan, trouxe um coquetel que serviu delicadamente. Pousou em seguida a bandeja sobre a mesa e sentou-se novamente ao meu lado, olhando-me com a mesma cara de nojo de antes. Não entendo como uma mulher tão autoritária como Susan Creamcheese podia dar tanta liberdade a um simples mordomo. Como se aguardasse o medonho empregado, Susan finalmente decidiu começar suas explicações:
- Minha família nem sempre foi rica. Somos de Birmingham, e, antes de casar, meu pai conquistou um bracelete de ouro em um torneio de poker, fato que já lhe contei. A partir disto, e com o pequeno prêmio que recebeu do torneio, papai investiu em várias espécies de negócios, conquistando a fortuna que ostentamos aqui. O bracelete tornou-se uma espécie de amuleto para meu pai.
- Entendo... A senhorita me disse ontem que o bracelete estava guardado em um cofre na Suíça, se eu não me engano.
- Sim, pois meu pai imaginou desde que percebeu o padrão nos ataques que o bracelete seria um alvo. E aquele maldito bracelete tem um valor apenas sentimental, já que em libras, não vale o preço de metade de um daqueles inúteis cavalos mortos. Mas foi o bastante para meu pai enviá-lo para a Suíça.
- Heh!- exclamou o mordomo ao meu lado. Eu estava visivelmente incomodado com o meu principal suspeito. Aquele homem fazia de tudo para me parecer culpado, pigarreando para acentuar as palavras de Susan, como o ajudante de doceiro ocupado apenas em colocar as cerejas no bolo. Mesmo nas partes que não mereciam destaque na narrativa, ele fazia um silvo chupando o ar entre os dentes que me causavam um calafrio. Eu comecei a desconfiar que ele fazia aquilo só para tirar minha concentração e me deixar passar em branco por alguma informação importante. Por via das dúvidas, decidi não beber do bourbon que ele havia me trazido. Entretanto, o manual dos detetives sempre nos adverte a disfarçarmos nossas suspeitas, pelo bem da investigação. Propus-me então a lançar um novo culpado:
- O que aconteceu com o sujeito que perdeu o bracelete para o seu pai? Pelas circunstâncias, ele me parece ser o suspeito número um.
- Heh!
- Jim Moriarty era um amigo de infância do meu pai e foi seu adversário na mesa final do torneio. Quando meu pai venceu, ele ficou transtornado, e o acusou de haver roubado na partida, coisa que obviamente, não aconteceu. A amizade entre os dois terminou ali. Moriarty passou a fazer ameaças a meu pai, especialmente quando este começou a prosperar financeiramente enquanto Moriarty permanecia na miséria. Arthur Creamcheese já era conhecido como um negociante emergente de Birmingham quando Moriarty furtou seu bracelete. Papai já imaginava quem seria o autor do delito e foi com ele tomar satisfações e recuperar o objeto. Eu ainda era uma criança quando papai esteve desaparecido por três dias. A polícia fez buscas em toda a região, mas papai apareceu em casa sozinho, todo machucado e com as roupas esfarrapadas, mas com o estúpido bracelete na mão. Segundo a versão que papai contou a polícia, ele e Moriarty entraram em luta corporal e acabaram despencando de uma cachoeira. A polícia suspeitou que papai tivesse assassinado o desafeto, mas como o corpo de Jim Moriarty nunca mais foi visto, não houve a prova material do crime.
- Seu pai pode ter ficado escondido ainda por três dias para evitar a prisão em flagrante...
- Em outra situação, eu ficaria extremamente furiosa por o senhor insinuar que meu pai seja um criminoso! Mas eu estou exausta demais até para me irritar com suas deduções idiotas. Susan desta vez sequer ruborizou a face, como fizera na noite anterior. Respirou fundo e aquele suspiro desta vez me soou “me demite!”. Depois, prosseguiu: - O fato é que as suspeitas de que meu pai fosse um assassino fez com que nós viéssemos nos instalar em Londres. Como desde então o suposto cadáver nunca foi encontrado, Arthur Creamcheese pôde continuar sua vida normalmente, conquistando cada vez mais respeito e fortuna.

Seguiu-se um curto silêncio. Fiquei de cabeça baixa, curvado, o queixo fincado no pescoço o que naturalmente fez crer à minha interlocutora que eu estava a reorganizar as informações que ela me narrara e passava a enovelar o fio do raciocínio. Mas não, na verdade eu estava apenas aguardando o mordomo ao meu lado soltar um novo “heh” para lançar-lhe nas fuças meu copo de bourbon. Não aconteceu um novo heh nem o chiado dos dentes chupados, foi-se o tempo das provocações, afinal. Susan decidiu então continuar:
- Quero que entenda, Mr. Smith, que qualquer alusão aos eventos de Birmingham só trará aos Creamcheeses mais dor e sofrimento. Por isso, precisamos de discrição, da sua discrição. Também por este motivo, não pude entregar as cartas à Scotland Yard.
- Mas se Jim Moriarty aparentemente está morto, não podemos colocá-lo na lista de suspeitos – disse olhando de soslaio para o mordomo. A menos que ele tenha um herdeiro, alguém que busque vingança.

Neste momento, surge das sombras do escritório uma figura disforme, com uma capa preta e uma máscara negra a cobrir-lhe todo o rosto. Era um homem grande e todo encurvado, com um braço maior que outro, como se fosse um Zorro cubista pintado por Picasso. O braço maior sustentava aquele corpo, apoiando-se na estante, enquanto o menor empunhava uma arma em nossa direção. Uma voz metálica sussurrou assombrosamente:
- A vingança é um legado que apenas corrói a virtude. Há um herdeiro, mas este busca a justiça, que é a herança dos homens honrados!

Susan ficou pálida e correu para os braços do mordomo, que soltou mais um “heh”. Se eu tivesse uma arma, daria um tiro no maldito empregado antes de defender Susan de nosso agressor. Mas, maldição, eu não ando armado!




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