EDIÇÃO 35 » ESPECIAIS

Erros Grosseiros

Chegou a hora de compreendê-los para então evitá-los


Andres Carvalho


Um torneio de alto nível é uma batalha entre mentes muito bem treinadas, capazes de suportar a tensão por horas a fio. Graças à prática extensiva e treino, os profissionais se acostumam a fazer análises abrangentes e profundas, que lhes permitem antever o curso de eventos, incluindo apostas, mãos e até mesmo níveis de blinds inteiros. Complexas árvores de raciocínio tático e matemático nascem e se ramificam a cada pote. Por outro lado, não há um único profissional – sem mencionar os amadores estudiosos e os jogadores casuais – que não cometa erros grosseiros de vez em quando. Chegou a hora de compreendê-los para então evitá-los.

Deixar de enxergar uma oportunidade elementar, entregar o stack inteiro em um blefe que mais parece um suicídio ou dar um fold sem sentido, como isso pode acontecer? De que modo uma mente treinada e afiada pela experiência pode subitamente ter um ponto cego? Por que uma análise sistemática pode, de repente, ser substituída por caos e confusão? Que fator é esse, tão potente a ponto de fazer com que haja mais amadores do que profissionais nas mesas finais dos maiores torneios do mundo?



Por trás dos erros existe uma lógica estranha e, como quase tudo na vida, os acontecimentos tidos como “aleatórios” tendem a ter uma explicação. Certamente, Chris Moneymaker, Joe Cada, Darwin Moon e muitos outros jogadores de técnica duvidosa, agradecem a existência desses fatores ocultos. Nosso trabalho é encontrar o motivo dentro da psique do jogador: uma vez que tenhamos descoberto o porquê, podemos procurar maneiras de combater os erros do nosso próprio jogo.

A despeito de trabalhos extensivos da psicologia do poker, não há registros de pesquisas reais neste campo em particular. Assim, este especial é uma tentativa de abordar o assunto de forma sistemática, ajudando o estudante do jogo a reduzir a incidência dessas desagradáveis ocorrências. De fato, não houve nenhum torneio que eu tenha jogado, no qual eu mesmo não tenha sido afligido por tais fatores.

A VERTIGEM DO SUCESSO

“Quando eu aposto, não tenho medo de ninguém”, contou-me um jogador paulista com orgulho. Admitidamente, exceto pela última mão que você jogar em um torneio, não há nada mais concreto e definitivo do que o ato de apostar: esse é o motivo de os jogadores respeitarem tanto as bets e os raises, e de terem sempre em mente a possibilidade de executar tais movimentos quando estão analisando uma situação específica.

Devido a diversos fatores psicológicos, uma aposta ou um raise inesperado é capaz de desequilibrar a disputa de um pote, influenciando o resultado final. Estou falando daquele pote em que tudo está sob controle, você aposta procurando extrair valor de uma mão fraca e, de repente, ouve o imponderável: “Raise!” E tudo começa a desmoronar. Assim, devemos estudar a razão pela qual um jogador subitamente torna-se cego diante de um aumento, para evitar sermos afligidos pelo mesmo mal.

No início da minha carreira como jogador, cheguei à seguinte situação em um torneio: os blinds eram de 500/1.000 com antes de 100, e restavam apenas duas mesas, com cinco jogadores em cada uma delas. Era a bolha da mesa final e eu tinha mais de 30% das fichas totais do torneio – uma situação de vitória quase certa. Eu podia pressionar à vontade ou jogar de forma confortavelmente conservadora: fosse como fosse, o restante da minha mesa apenas se rastejava para sobreviver à bolha. Na ocasião, eu estava ganhando os blinds com apostas de 2,5 vezes o big blind antes do flop em todas as mãos já há algumas órbitas. Meu stack crescia e crescia, e ninguém estava disposto a me parar, então uma hora um jogador fraco me deu uma baralhada monstruosa pagando um all-in com J T contra meu J J, e acabou acertando um flush com uma única carta. Mas meu stack era grande e pôde suportar o baque. No entanto, fiquei um pouco aborrecido, já que meu estoque havia sido reduzido em um terço e agora aquele cara estava feliz e triunfante com o seu novo stack duplicado, que era então uns 2/3 do meu.



Em determinado momento, recebi A A. Eu estava no small blind e a mesa havia rodado em fold até mim, enquanto no big blind estava o dito baralhão. Ninguém me dava ação, exceto ele, com um stack mais saudável graças àquele tipo de milagre. Então entrei de limp, pensando: “Se esse cara acertar um par no flop, vai me entregar o stack todo”.

Por dentro, eu sabia que a vitória não poderia mais ser adiada. O flop foi aberto: K 6 4. Pedi mesa, e meu adversário também. No turn veio um 7 e eu novamente pedi mesa. Meu oponente apostou o pote e eu o aumentei em duas vezes e meia esse valor. Foi quando, de forma inesperada, meu adversário anunciou all-in. Até então eu me sentia nos céus com o meu overpair e por isso dei o call mais rápido da minha vida. Contudo, eu não esperava aquele raise, e imediatamente após ter pagado, antes mesmo que meu oponente mostrasse suas cartas, voltei a raciocinar e rapidamente me senti desabando do paraíso ao inferno. Percebi que era provável que ele tivesse um flush, uma sequência ou dois pares. Engoli a seco ao ver meu oponente acertar a mais óbvia das mãos: J 2.

Agora era eu que precisava lutar pela minha vida para não ser o bolha. Certamente, eu não deveria ter jogado desse modo, poderia ter conduzido a mão de forma menos displicente, apostando antes do flop, pensando na possibilidade de ele ter um flush draw depois, ou até mesmo dando fold nos meus ases ao ver o all-in inesperado. Mas algo falhou e toda a minha prontidão entrou em pane. Abaixei a guarda e, quando percebi, já havia sido fatiado em cubinhos pelo oponente iniciante.

Não havia limite para o meu aborrecimento. Algumas mãos mais tarde eu perdi um coinflip e acabei sendo o bolha do torneio. Um tempo depois eu vi na Internet Daniel Negreanu eloquentemente descrever como ele tinha tomado um raise inesperado que acabou arruinando seu trabalho de dias construindo um stack considerável em um grande torneio.

Ele escreveu: “Eu tinha um stack grande e era o segundo em fichas do torneio; tinha um bom ritmo de crescimento em fichas e, naturalmente, queria vencer o torneio o mais rápido possível. Então aconteceu a seguinte mão: Eu tinha dado call pré-flop com 4 6 em uma aposta vinda do chip leader, que era um jogador amador fraco que tinha conseguido sua vaga em um satélite. O flop veio K J 7, meu oponente apostou e eu apenas paguei. O turn trouxe uma carta nula, ele pediu mesa e eu também. O river trouxe outra carta irrelevante, então ele pediu mesa e eu apostei um valor alto, o pote, pois queria que ele me pagasse com uma mão do tipo par do meio, pensando que eu estivesse empurrando diante da demonstração de fraqueza dele ao dar check-check no turn, seguido de check no river. Ele então anunciou all-in instantaneamente e minha boca movimentou-se antes de qualquer pensamento: ‘Call’. O desfecho foi simples: ele tinha A 2 e eu estava morto no torneio. Eu tinha uma mão grande e ele tinha uma maior, paciência...”

Essa explicação merece uma consideração. É verdade que às vezes uma mão enorme pode ser a razão de um erro, como podemos verificar em muitos outros exemplos. Apesar de tudo, eu não acho que somente esses motivos mecânicos explicam a falta de visão de um flush maior por Negreanu.

A principal razão para os dois erros é a diminuição do estado de atenção que ocorreu devido ao reconhecimento de que a vitória estava próxima. Estou completamente convencido de que se Daniel Negreanu possuísse um stack menor e estivesse com um ritmo de crescimento menos confortável, ele não teria deixado escapar a possibilidade de o adversário estar segurando um flush maior. O mesmo se aplica ao meu caso. Você pode ter certeza de que as possibilidades não teriam sido esquecidas se a situação no torneio fosse a de uma luta tensa em uma disputa difícil, ao invés de jogar para vencer um torneio ganho.

Phil Ivey já afirmou que acredita ser essencial para todo jogador forte desenvolver uma atenção imutável que deve isolá-lo completamente do mundo ao seu redor. Tanto eu quanto o monstro sagrado Daniel Negreanu falhamos em alcançar este nível de atenção nos dois casos observados. Sim, nós jogamos as nossas respectivas vitórias no lixo por estarmos excessivamente confiantes e complacentes. O fato foi que tínhamos uma grande vantagem sobre os demais jogadores à mesa e, por isso, abaixamos a guarda.

Eu chamo essa diminuição no nível de atenção quando a vitória está próxima de “vertigem do sucesso”. Praticamente todo chip leader de torneio sofre desse mal em algum momento, e é por isso que os líderes em fichas durante as fases intermediárias de um evento costumam morrer antes da mesa final.

No torneio de $100+9 de domingo no PokerStars que eu ganhei, em um dado momento ninguém menos do que “JohnnyBax” estava sentado ao meu lado. Nós dois estávamos grandes em fichas, tanto em relação aos blinds quanto à média do torneio. Quando o vi, pensei: “Tempos difíceis virão”. No entanto, nós nos confrontamos em um pote, e eu apliquei um movimento e surrupiei o pote dele. Então houve mais um confronto e eu extraí um bom valor induzindo-o a um blefe no river. Eram potes pequenos, mas na minha cabeça soava como: “Incrível, tô jantando o JohnnyBax!” Assim, depois de três ou quatro horas de torneio, Bax apostou do cutoff e eu dei call do button com 5 6 (abusado ou não?); o flop trouxe Q 5 2, e ele saiu atirando ¾ do pote, daí pensei: “Bax está dando uma continuation bet. Em um flop seco desses ele não apostaria tão alto pelo valor e, mesmo que tenha algo como JJ, JQ ou KQ, ainda há uma grande margem para ele dar fold”. Eu sabia que ele confiava nas suas habilidades para efetuar um laydown e crescer seu stack em oportunidades futuras. “Aqui você não empurra!”, pensei. E voltei all-in. Detalhe: meu all-in era de aproximadamente cinco vezes o valor do pote! Ele foi para o extra-time, e o pior aconteceu: ele deu call com A Q, e todo meu stack e meu torneio estavam por um fio. Graças a Deus, um 5 milagroso bateu no river e “JohnnyBax” foi eliminado.

Não há dúvida de que a razão para o meu ledo engano foi o excesso de confiança, que sabotou o meu senso de perigo. Aí está a causa dos péssimos erros: o sentimento de exaltação e autocongratulação. Quando sua cabeça está girando devido ao sucesso, é a hora em que os erros começam a ocorrer. Um dos melhores jogadores da história do xadrez sabiamente afirmou: o sucesso passado é o maior inimigo do sucesso presente. Devemos tentar desenvolver uma regra para nós mesmos. Quando você enxergar que está perto da vitória, redobre a atenção. Quanto mais próxima ela parecer, mais base psicológica existe para se cometer um erro.

Outro exemplo nesse sentido aconteceu com o milionário Paul Phillips, um jogador amador genial, que havia ganhado e batido todos os tops players do mundo, conseguindo bons resultados consecutivos no Big Game, na WSOP e no WPT. Só que ele, ao enfrentar os tubarões do jogo em mais uma mesa final, acabou cometendo um erro grosseiro ao largar instantaneamente uma trinca no river, com medo de um improvável flush de copas, uma vez que as cartas do naipe surgiram na seguinte disposição: uma única no flop, e duas consecutivamente no turn e no river; e houve uma rodada de apostas bastante ativa no flop que quase nenhum jogador no mundo faria em busca de um flush runner-runner. Este é um caso em que não é necessário mais nenhum comentário. Phillips estava demasiadamente confiante por conta dos seus bons resultados recentes e não pôs em cheque seu impulso, elevando-o ao status de lei absoluta, sem a menor reflexão.

Algum tempo atrás, tive a oportunidade de analisar alguns hand histories de torneios meus com um amigo, e sempre fiquei surpreso com uma coisa estranha na forma de ele trabalhar. Tendo encontrado uma forma de ganhar o pote, ele em sequência começava a procurar por outra. Tudo parece simples: você tem uma trinca, aposta e extrai valor da sua monstruosa mão no river, mas o meu amigo não se satisfaz e tenta encontrar algo melhor. Ele me questionava: “Não é possível ganhar mais fichas dando um check-raise? Você não poderia ter dado uma overbet induzindo-o a blefar com todo o stack?” Eu perdi a paciência e disse alto: “Precisa disso tudo?” Mas meu amigo continuou em silêncio, enquanto usava o Excel e o poker Stove para calcular EVs – um hábito que ele mantém até hoje.

A explicação deve se apoiar na justificativa de uma mente inquieta tentando descobrir tanto quanto for possível sobre determinada situação, incluindo os mínimos detalhes, para conhecer a fundo todos os problemas estratégicos e truques táticos que uma situação pode conter. E então guardar isso na memória para que, em situações análogas, seja possível, no calor da batalha, desferir o melhor golpe.



Contudo, esse hábito tem um lado perigoso. Você encontra uma maneira de ganhar, mas não para por aí, e acaba procurando outra. Ao encontrar, comemora: “Que posição eu tenho! Posso vencer desse jeito, posso vencer daquele jeito”. Então descobre uma terceira possibilidade e realmente fica com uma alta opinião sobre si mesmo. Só que, nessas horas, você pode ficar tonto com o excesso de detalhes e cavalgar rumo ao abismo. Eu já vi esse amigo jogando certa vez e, posso dizer, é empolgante! Dúzias de check-raises, apostas mirabolantes e truques bem sincronizados, então POW! Subitamente ele perde todas as fichas cometendo suicídio em um único movimento – brilhante, diga-se, mas desnecessário e, por isso mesmo, estúpido.

Em situações como as do exemplo acima, um jogador pode ser vencedor de duas formas. Uma é simples e direta, a outra é bonita e envolve um arsenal de movimentos bastante ousados. Nessas horas, a personalidade do jogador se mostra com clareza: aqueles que realmente valorizam a vitória (leia-se, encher o bankroll de dinheiro), escolhem o primeiro método; os outros não precisam de nenhum convite para se sacrificar e não temem risco algum, ainda que isso envolva perder muito dinheiro.

Em todo caso, um jogador deve decidir de acordo com as suas próprias considerações, preferências e posição no torneio. Mas o brilho falso, especialmente quando foge à lógica da situação, deve ser considerado uma falha. A busca pelo brilhantismo é uma atitude errada da mente. Você pensa: “Eu posso inventar algo; veja, posso até mesmo me sacrificar dando uma carta grátis, eu tenho um full house”. E aí você está a um passo da vertigem que encoraja os deslizes. Note, no entanto, que o erro no poker nem sempre implica em perda: muitas vezes significa não ganhar o suficiente.

REFLEXOS CONDICIONADOS

Espero que meus colegas profissionais me perdoem por aplicar à nobre arte do poker um termo desenvolvido pelos fisiologistas em experimentos com animais, mas, na essência, o termo “reflexo condicionado” explica muito bem diversas ações de um jogador durante um torneio. Assim como um cão pode ser treinado para executar determinado movimento a partir de certo estímulo, muitas das reações defensivas automáticas dos jogadores de poker aparecem devido a inúmeras experiências de jogo que acabam moldando seus hábitos.



Recorde-se, por exemplo, do quão subconscientemente você cuida para que seu adversário não tenha as pot odds necessárias para buscar um flush draw, sem qualquer pensamento real, mas sendo capaz de assegurar a correção ou incorreção de uma jogada ardilosa ou a ameaça de um squeeze. Tais respostas automáticas geralmente são úteis porque aceleram os processos mentais da pessoa e a auxiliam a fazer uma avaliação correta dos planos estratégicos. Contudo, às vezes esse padrão pode ser danoso, como veremos nos exemplos a seguir, nos quais isso foi a principal causa de erros. Casos assim são comuns, e alguém que desejar estudar suas próprias reações e conhecer os melhores modos de ser um jogador vencedor no poker deve estar familiarizado com isso.

Quantos de nós, depois de apostar pré-flop, automaticamente fazemos uma continuation-bet no flop? Quantos de nós não apostam instantaneamente três vezes o blind com AK? É quase como se a sua mão quisesse clicar no mouse direto, sem que sua mente sequer pensasse. Em muitas circunstâncias, a jogada é correta e forçada, mas há exceções. Vejamos uma situação que aconteceu com um dos melhores jogadores que eu já conheci: ele estava em cinco mesas simultaneamente, quando algo aconteceu – havia recebido AA em três dessas mesas no mesmo instante. De forma automática, ele apostou três vezes o big blind em todas. Os flops foram abertos e ele apostou automaticamente mais uma vez. Então, em duas das mesas, um jogador voltou all-in e ele pagou. O que aconteceu? Na primeira mesa em que ele havia apostado, um oponente deu call e o flop havia trazido três cartas de espadas, sendo que, como os ases dele eram pretos, ele apostou mais uma vez e tomou reraise all-in, no qual deu call, mas perdeu para um flush feito. Na segunda mesa, ele apostou e um limper pagou. O flop trouxe perigosíssimos 6 5 4. Ele apostou, o adversário voltou all-in, ele deu call e viu uma trinca. Na última mesa, foi pago por um dos blinds, apostou novamente e seu oponente desistiu. Horas depois, o bankroll todo dele havia se esgotado, por conta de um tilt avassalador que o consumiu enquanto ele murmurava o quanto era azarado por ter perdido com ases em duas mesas simultaneamente.

“Ao apostar pré-flop, deve-se apostar depois do flop também”. Quantos torneios não foram perdidos por jogadores que seguiram cegamente esse reflexo? Quantas vezes desperdiçamos uma excelente oportunidade de roubo, simplesmente por causa da reação automática de se desistir de mãos como 7 4, T 2, Q 5 etc.? De quantos torneios nós fomos eliminados por causa de um reflexo condicionado de “se deu odds, eu pago” ou de “eu tenho AK, eu pago um all-in”?



Uma reação similar às citadas acima é aquela de “faça tudo de forma cautelosa”. Este é um principio norteador que fica por trás de muitos dos planos estratégicos e táticos de um profissional. Você pode achar difícil ir contra esse impulso, mas, em uma situação concreta, isso pode ser totalmente enganoso.

Certa vez, eu estava jogando um torneio e me vi apostando dois terços do pote com a melhor trinca possível por conta da presença de um flush draw na mesa, enquanto eu estava short stacked e deveria ter cozinhado mais o pote para extrair mais fichas e poder ressuscitar dos mortos! O fato de a textura do bordo ter um draw não faz com que seu adversário esteja, necessariamente, perseguindo aquele draw.

Um dos casos mais interessantes de reflexo condicionado ocorre quando demonstramos a predominância, sobre todos os outros fatores, do nosso respeito pelo poder absoluto de certas mãos que desde sempre aprendemos que são boas. Essa situação frequentemente se dá quando recebemos AA, e a melhor jogada – num determinado bordo, é claro – deixa de ser obtida porque você não é capaz sacrificar seu par de ases colocando-os no lixo ou ganhando um pote pequeno. Nem os jogadores mais fortes são imunes a essa doença.

Por exemplo, Layne Flack, provavelmente um dos melhores jogadores de no-limit hold’em do mundo, estava jogando a mesa final do WPT de Foxwoods em 2005 e enfrentava uma duríssima concorrência com Phil Ivey, Howard Lederer e Andy Block. O jogo já se estendia por horas e Flack não havia jogado nenhuma mão de maneira incorreta. Incrivelmente, ele conduzia suas cartas e jogadas de modo perfeitamente sincronizado com as mãos dos seus adversários. Era como se ele estivesse lendo a mente de Ivey e dos demais jogadores. Então, em determinado momento, Flack recebeu AA e errou pela primeira vez. Howard Lederer segurava KJ e tinha flopado os dois pares mais altos. Depois que essa mão acabou, Flack ainda tentava entender como aquele trem havia passado por cima de sua cabeça. Todas as fichas foram para o pano sem que ele sequer cogitasse a possibilidade de estar com a mão perdedora.

A partir de casos como esse, temos a confirmação de que, no calor da batalha, um jogador pode ser influenciado pelo excesso de confiança, por ter uma mão enorme ou por ter conseguido obter uma vantagem (o famoso edge) perante seus concorrentes. Nós já falamos disso mais cedo: é a vertigem do sucesso.

Outro típico reflexo condicionado capaz de produzir uma infinidade de erros é a supervalorização das cartas do flop diante das do turn e do river. Parece que as três primeiras têm mais poder, e que as demais não podem jamais melhorar a mão dos adversários. Quando se tem par de reis, um ás no flop geralmente faz os jogadores pisarem muito mais no freio do que quando ele aparece no turn. Por quê? Certamente existem explicações lógicas para isso, no entanto, elas nem sempre se aplicarão. Eu já assisti a uma mesa com Gus Hansen em que ele se suicida com QQ em um bordo com ás, empurrando e empurrando sem acreditar que seu adversário possa ter o ás simplesmente pelo fato de ele ter surgido no turn e o seu adversário ter dado call em um reraise no flop. Tenho certeza de que, se esse ás tivesse vindo no flop, Gus teria sido muito mais cauteloso e provavelmente não teria sido eliminado nessa mão. Tenha isto em mente: acreditar que algo não possa acontecer é a origem de muitos erros.



O PONTO CEGO E A REGRA DE BLUMENFELD

No livro “Física Recreativa”, o autor Yakov Perelman menciona um experimento interessante. Coloque uma pessoa olhando fixamente para um quadrado com grande ponto preto desenhado próximo a um de seus lados, e logo ela deixará de ver o ponto. A razão disso é que nós temos um chamado “ponto cego” em nossa visão, e simplesmente não enxergamos um objeto cuja imagem esteja nesse local.

Algo parecido acontece no poker. Algumas vezes, um jogador forte deixa de perceber um flush óbvio ou que ficará comprometido com o pote. Às vezes ele pensa que tem uma sequência ou flush quando de fato não tem. É como se as cartas por um momento tivessem saído da sua área de visão e ele se esquecesse delas completamente.

Um exemplo clássico de ponto cego aconteceu com Phil Hellmuth, que, pensando ter duas cartas do mesmo naipe (na verdade, eram apenas vermelhas), pagou um all-in na bolha de um torneio de $10.000 de buy-in. Sim, um campeão do mundo, esqueceu! Em outro caso, possivelmente até mais chocante, Phil Ivey deu fold na melhor mão na reta final do Main Event da WSOP 2009. De fato, há uma infinidade de jogadores que já passaram por situações semelhantes. Eu, particularmente, não conheço ninguém que já não tenha sido enganado por um ponto cego, crendo ter sequências fantasmas, confundindo AA com A4 e outras bizarrices do gênero.

Ao analisar uma situação complexa, o profissional naturalmente se preocupa em não deixar escapar nada da situação que ele está observando com profundidade. É difícil prever o que vai acontecer. Então, para perceber todos os detalhes no caminho de um futuro imprevisível, o jogador concentra toda a sua atenção nele. Entretanto, é comum ocorrer já nesse instante, na primeira movimentação, na base da árvore analítica, uma jogada horrível: o profissional não detecta um elemento tático ou uma ameaça óbvia. E esta é, com frequência, a razão dos seus erros.

Como alguém pode combater estas e outras tendências prejudiciais? O famoso mestre enxadrista Benjamin Blumenfeld estudou diversos fatores para revelar os aspectos psicológicos de alguns esportes da mente (até escreveu uma tese de pós-graduação sobre o assunto). Ele mesmo viveu ocasiões em que frequentemente também deixava de ver aquilo que estava bem debaixo do seu próprio nariz, e afirmou que a mesma coisa se aplicava, em graus variados, aos melhores jogadores do mundo. Para lutar contra esse grave risco ele sugeriu a seguinte regra, que chamarei de “Regra de Blumenfeld”. Simplificadamente, ela diz que “ao terminar de analisar todas as possibilidades, é preciso desligar-se da situação por alguns instantes e então focar-se novamente”. O enxadrista recomenda que você, antes de concluir sua análise, desvie sua atenção para algo fora do jogo. Pode ser uma garota bonita, um castelo de fichas ou um chip trick, não importa, desligue-se do jogo.



Tenho observado essa prática em muitos dos meus colegas de profissão. A grande maioria dos profissionais faz isso: eles estudam determinada situação, param, desligam e começam a brincar com as fichas, olhar ao redor etc., então voltam à realidade. Dessa forma, se distanciam daquele instante futuro no qual a mão vai se desenvolver – e para o qual devotaram uma valiosa parte do seu raciocínio – e retornam para o aqui e agora, para suas posições e suas cartas reais, para o bordo e para os adversários a sua frente.

A partir daí, com sua jogada já gravada (e ainda não efetuada) na mente, reveja suas cartas e o bordo. Não esteja no tempo futuro, mas no presente, reconhecendo a realidade e as preocupações do momento. Não se apresse tomar sua decisão. Gaste mais alguns segundos olhando a situação, aquiete o seu espírito, de modo a não ter motivo para se arrepender, e finalmente enxergue a situação pelos olhos de um jogador iniciante: atente-se apenas ao óbvio. “Qual jogo eu acertei até aqui? Posso perder tudo, ou boa parte do meu stack, nessa mão? Estou deixando alguma pista para trás?” Essas verificações simples quase certamente lhe salvarão de deixar passar algo imediato.

A inobservância da Regra de Blumenfeld elimina mais jogadores de torneios do que problemas com kicker. Ela é um sólido suplemento à análise fundamentada e ao jogo de poker vencedor, pois permite que você combine profundidade de pensamento e precisão prática com um jogo livre de erros grosseiros.

ANÁLISE OU JULGAMENTO ESTRATÉGICO: EIS A QUESTÃO

Existem inúmeras situações chave nas quais o desfecho de um torneio acaba sendo decidido em um único ponto. Só há um modo de solucioná-las com maestria: através da atenção profunda aos detalhes de uma posição complexa. No entanto, perceba que tais situações só podem ser dissecadas por este meio devido a sua natureza.

Em jogos duros, alguém frequentemente enfrentará uma situação complexa, em que a pesquisa pela jogada correta envolverá um número imenso de possibilidades. Na grande maioria dos casos, esse tipo de análise deve ser feita dentro dos limites do jogo pragmático. Contudo, haverá vezes em que o lado puramente prático das coisas (a saber, o instinto e o “olhomêtro”) induzirá o jogador a escolher outra linha completamente diferente.



Muitos autores já enfatizaram que um jogador que quiser se profissionalizar deve ser capaz de fazer análises precisas, pois é isso que decide a maioria dos torneios. De qualquer forma, há situações – até torneios inteiros – em que este processo passará para um segundo plano, e o principal fator será o entendimento da situação, a leitura daquele momento. Nesses casos, o profissional deve confiar na habilidade que foi desenvolvida com a experiência, algo que chamamos de “julgamento estratégico”.

Mas como decidir qual situação deve ser dissecada por análise e qual deve ser submetida ao julgamento estratégico. Isso geralmente é determinado pelo tipo de ação pré-flop. Quando ela tiver sido branda e sem contato direto das forças dos jogadores, a escolha da melhor jogada normalmente se baseará em fatores de julgamento estratégico. Quando a ação pré-flop conduz a uma luta aguda, cabeça a cabeça, é preciso parar e analisar, quantas vezes for preciso.

Então, pessoal, como eu disse ao longo do texto, fique atento para não ser pego pela “vertigem do sucesso”. Não permita que o excesso de confiança na vitória acabe lhe deixando cego para circunstâncias óbvias como a execução de uma jogada errada ou um oponente com uma mão melhor. Para evitar que isso aconteça, sempre que possível, faça uso da Regra de Blumenfeld: antes de executar uma jogada decisiva, analise, desligue-se da situação e retorne. Além disso, quando estiver diante de decisões chave, fique atento para saber qual método utilizar, se o analítico propriamente dito ou se o julgamento estratégico. Certamente isso vai fazer com que erros grosseiros sejam cada vez menos frequentes, quiçá até totalmente eliminados do seu jogo. Até a próxima!


NESTA EDIÇÃO



A CardPlayer Brasil™ é um produto da Raise Editora. © 2007-2024. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.

Lançada em Julho de 2007, a Card Player Brasil reúne o melhor conteúdo das edições Americana e Européia. Matérias exclusivas sobre o poker no Brasil e na América Latina, time de colunistas nacionais composto pelos jogadores mais renomados do Brasil. A revista é voltada para pessoas conectadas às mais modernas tendências mundiais de comportamento e consumo.


contato@cardplayer.com.br
31 3225-2123
LEIA TAMBÉM!×