BN: Eu imagino como tenha sido a questão do preconceito na época.
Raul: Como com qualquer coisa diferente que alguém faz tende a ter um preconceito meio que instantâneo, as pessoas em volta que ficaram sabendo diziam: “Pô, vocês são loucos. Como é que vocês vão fazer isso? Como assim? Vão perder tudo!” e coisas do tipo. Eu até brincava e dizia: “Eu não tenho nada para perder. Como é que eu vou perder tudo?” [risos] Agora, o mais impressionante disso tudo, que eu e ele [CK] pudemos acompanhar, foi esse crescimento: até jogadores famosos, que já ganharam a World Series e tal, não tiveram esse tempo todo que a gente teve de participar do crescimento do jogo. Tem campeões aí que surgiram depois da gente. Não me lembro a data exata, mas acho que a gente descobriu em Texas Hold’em em 2001.
BN: E quando foi que vocês descobriram o poker online?
Raul: Eu assisti a um filme, o “Rounders – Cartas na Mesa”, então a gente foi para o site de gamão em que sempre jogávamos, e lá perguntamos no chat se alguém conhecia o tal do Texas Hold’em. Ficamos perturbando mesmo, perguntando toda hora, até que um cara falou: “Conheço. Tem um site que você pode entrar”. Era o Paradise Poker, o maior da época, com 2.000 jogadores. A gente começou a jogar lá e ficamos sabendo que existia o PokerStars, que tinha 800 jogadores online e, mais tarde, ficamos sabendo do Party Poker, onde havia 500 jogadores. O Full Tilt, site que me patrocina, nem sonhava em existir ainda – seria lançado em 2004. Então esse era o cenário: você somava todos os sites de poker da época e tinham 3.000 caras online. Isso por volta de 2001, quando a gente começou no jogo.
BN: Vocês já conseguiam enxergar as proporções que esse mercado iria tomar?
Raul: Quando a gente começou, nem a gente, nem os donos dos sites, nem ninguém poderia imaginar que isso iria virar uma febre mundial. Mas sei que a gente gostou de cara. E eu tive o prazer também de jogar a World Series 2003, a do Moneymaker, que gerou o boom do poker. Ganhei a vaga num satélite live em Vegas. O Main Event teve, se eu não me engano, uns 800 jogadores, o que já era considerado muito expressivo na época.
BN: Sua formação é praticamente autodidata. Quando você começou, quase não havia material, e tudo era meio na base do instinto. De repente, viu-se disputando uma World Series em Vegas. Quais são as qualidades que você enxerga em si mesmo que lhe permitiram atingir essa realização até então improvável?
Raul: Acho que as minhas maiores qualidades são duas. Primeiro, eu tenho um raciocínio lógico bom para o jogo. Talvez isso venha um pouco daquela história do dom: tem gente que entende qualquer jogo em meia hora e tem gente que leva uma vida e não consegue pegar a manha. Eu sempre tive esse lado de ter facilidade em aprender os jogos. A segunda, é que eu rapidamente aprendi que toda jogada tem que ter um motivo (sempre falo isso em meus artigos). Quando você entende isso de verdade, começa a pensar o jogo, e aí começa a aprender. O cara dá um raise de 3x, mas não sabe o porquê daquilo. Dá um call, mas não sabe por qual motivo, e vai jogando. O grande jogador tem motivo para todas as jogadas que executa. Mesmo que diga que foi feeling, ele tem um motivo interior que imaginou. Nem que o cara tenha coçado o joelho na hora e tenha sido a razão de ele ter ido all-in, mas ele tem um motivo para cada movimento. Isso me fez ver a complexidade do jogo: saber que tem que pensar em cada movimento me fez enxergar que o jogo era muito difícil e fez com que eu quisesse entender mais o jogo, aprender mais.
BN: Um ponto curioso é que você e o CK têm uma amizade desde antes do poker, começaram a estudar o jogo juntos, tiveram, por assim dizer, o mesmo ímpeto e a mesma formação. Em que momento o seu jogo passou a diferir do do CK?
Raul: Antes de responder, preciso explicar uma coisa: o que acontece é que eu na verdade tive um erro de cálculo. Se eu tivesse a visão, há dez anos, de que o poker seria o que se tornou hoje, eu teria me especializado em multitable. Só que, na época em que a gente começou, os multitables não eram tão interessantes; os prêmios eram de 2 a 3 mil dólares, ou seja, você jogava horas, como hoje, mas com prêmios dez vezes menores que os atuais.
Outra coisa é que o Christian sempre teve um lance muito de competição, de querer estar à frente dos rankings. Já eu tinha mais um lado de querer disputar mais comigo mesmo, querendo estar sempre onde era mais lucrativo financeiramente. Então o CK foi para os multis e eu fiquei mais na área dos cash games limit, que na época era muito mais forte do que o no-limit. O no-limit era muito mais fraco, tinha muito menos mesas, e eu tinha uma vantagem muito boa em limit.
Quanto ao jogo em si, eu diria que o Christian sempre teve uma agressividade maior do que a minha. Às vezes, eu o questionava por ser agressivo sem justificativa. Mas hoje, ele realmente está num nível muito forte de jogo, porque já justifica a agressividade. Se você me der uma explicação sobre porque teve que ir all-in blefando, ou dar 3-bet ou 4-bet, aí sim eu concordo, mas desde que me explique o motivo, e não tenha feito isso porque deu vontade. Acho que hoje ele chegou num nível em que está conseguindo entender a própria agressividade, mas na época ele partiu mais para o lado agressivo acho que por instinto mesmo, e eu fiquei um pouco menos agressivo que ele. Acredito que a diferença de ele ter seguido um caminho e eu outro foi essa: ele foi para onde havia competição e eu para onde conseguisse mais rentabilidade.
BN: Quase ninguém no Brasil tem tantos anos de experiência no Texas Hold’em. Se você pudesse voltar no tempo, faria alguma coisa diferente?
Raul: No cenário atual, caso eu começasse a jogar poker hoje, provavelmente me dedicaria aos multitables. Atualmente, nos cash games, para se chegar a uma rentabilidade compatível com a de multitable, você tem que jogar muito duro, é muito difícil. Não que torneio seja fácil, mas você vê jogadores de medianos a bons dando tacadas em multitables que eles não conseguiriam em cash games.
Hoje, eu sinto que tenho um degrau a subir em relação aos jogadores brasileiros top players de multitable. Eu jogo bem, lógico, conheço, mas, por treino mesmo, acho que tem uma turma que está um degrau acima. Eu estou aqui, já vi que o multitable é um caminho excelente para se ter uma rentabilidade boa no poker, então tenho me dedicado mais. Ano passado, fiquei um pouco afastado devido ao nascimento da minha filha, mas agora estou de volta, jogando com mais força, tanto online quanto ao vivo.
Mas olhando para trás, meu maior erro com certeza foi a administração de bankroll. Se eu começasse a jogar hoje, faria um esquema totalmente diferente nesse sentido. Quando eu comecei, tinha uma vantagem por entender o jogo mais rápido do que a maioria das pessoas, então já tinha um lucro. Depois que me profissionalizei, tive 29 meses seguidos de lucro no poker – eu tinha uma vantagem muito grande. O que eu não soube fazer foi administrar bankroll para subir de valor: eu não conseguia subir porque não conseguia juntar. Eu ganhava e gastava, ganhava e gastava, então nunca conseguia ter um giro que me possibilitasse subir de nível. Quando eu subia sem capital de giro, apanhava e tinha que descer, que é o que normalmente acontece: você não consegue nem testar se tem habilidade para jogar num nível acima porque rapidamente é engolido pela falta de bankroll, e tem que descer. Esse foi meu maior erro.
BN: Com o nível técnico dos jogadores cada vez mais equilibrado, os especialistas dizem que, num futuro próximo, talvez a única vantagem que vai existir entre um jogador e outro é o bankroll. Você concorda?
Raul: Bankroll é uma coisa relativa, ninguém sabe qual é o valor que você tem que ter, mas a verdade é que precisa ter mais do que acha que é o suficiente. Se você for jogar um torneio de $10, e acha que com $300 dólares está bem, então suba esse valor para mil. Não é muito. Jogue para mil, aguente a oscilação, aguente seis meses de azar, que seja, para você realmente ter certeza se tem jogo ou não para esse valor. Eu acho que o principal hoje em dia é o cara ter isso, bankroll. E Respeitá-lo – o que é dificílimo–, pois um cara com mil dólares para jogar torneios de $10 tende a rapidamente dar um tiro num de $100. É normal no jogo. É preciso estudar muito para chegar ao nível de um Christian, um Caio Pimenta, um Akkari ou um Bruno GT, ou até ao meu nível mesmo. Você precisa meter a cara, estudar, comprar livros, participar de fóruns, sempre tirar dúvidas com os amigos. Tem que dar uma ralada mesmo.
BN: Como você avalia a importância da família para o seu equilíbrio enquanto pessoa e enquanto jogador?
Raul: Eu penso que a família lhe deixa mais centrado. A gente que tira o sustento do jogo vive muito no limite, digamos assim. Porque realmente a gente faz por prazer, é gostoso, traz satisfação, mas tem o stress, as perdas e ganhos, mexe muito com o emocional, e eu acho que a família lhe ajuda a botar meta no jogo, botar foco, disciplina. Quando é você sozinho, se você perder seu bankroll todo, o problema é só seu, depois você dá um jeito e se vira, mas quando você tem que comprar fralda, leite, isso não pode acontecer. Mesmo que esteja em tilt, você tem que parar um pouquinho antes para poder salvar algum. Eu acho que, nesse sentido, a família diminui bem a taxa de tilts grandes que acontecem. O Akkari cita sempre o exemplo de que colocava as contas do colégio das filhas atrás do computador, num quadro de cortiça, e que, quando ia tiltar, pensava no tanto que tinha que pagar tanto de colégio, tanto disso, tanto daquilo, então desligava o computador e ia dormir, que era mais barato [risos].
BN: Depois de tantos anos de estrada, quais são seus sonhos no poker?
Raul: Um dos sonhos já foi realizado: ser contratado pelo Full Tilt – isso com certeza é a realização de um sonho. Imagina: a gente começa a jogar, eu e o Christian, dez anos atrás, estamos jogando ali sem nem saber direito por que ainda. Estamos lá, começamos a ganhar dinheiro – “pô, que legal!” –, daqui a pouquinho começa a crescer, fica gigante, faz um site, começa a ser reconhecido no Brasil, as pessoas têm muito respeito, admiração, tanto por mim quanto por ele, acham legal e tal, só que no cenário internacional, até então, não tínhamos esse reconhecimento. E, de repente, a gente consegue fechar com um dos maiores sites do mundo um contrato oficial para ser jogador Red Pro do Full Tilt. Satisfação enorme. Você vê que somos eu, Christian, Brasa e Caio Pimenta. Quer dizer, só fera. Pelo mundo afora tem vários outros nomes, quem quiser pode entrar lá na página do Full Tilt, são vários nicks, nomes famosos como Red Pro, então é um sonho realizado.
Outro sonho, que não tem como negar, é o de quase todo mundo que está no poker, e que o Alê Gomes já conseguiu: trazer um bracelete, poder botar um braceletezinho ali na estante. Acho que todo mundo que joga poker – a não ser o jogador que é exclusivamente de cash – tem o sonho de trazer um bracelete. Não precisa nem ser do Main Event, qualquer evento já é bem vindo [risos].
Sim, tem outro sonho também: sempre quis ser capa da CardPlayer Brasil. E tô falando na vera. Não é bajulação [risos].
Bruno: Então fique a vontade para mandar uma mensagem para os leitores da CardPlayer Brasil.
Raul: Quero mandar um abraço para todo mundo que acompanha a revista e o podcast com o Kalil e o Lanza. Quero deixar registrado meu abraço para o Bruno, que está fazendo esta entrevista.
Aos leitores, quero falar que, independente de você decidir jogar poker por hobby ou por profissão, é legal que entenda o que está fazendo: jogar por jogar faz com que você acabe perdendo e se desiludindo com o jogo, pois ninguém gosta de perder. Ainda que o dinheiro não faça falta, perder é chato. Então, a CardPlayer Brasil, por exemplo, é um lugar excelente para você dar uma melhorada no seu jogo, crescer com vários artigos interessantes.
Fora isso, treinar. Não tem jeito: meta a cara. Se não tiver dinheiro, jogue freeroll; se tiver pouco dinheiro, jogue torneios de $1 ou $2. Mas é isso, meta a cara, corra atrás, leia sempre tudo que puder e vire um bom jogador mesmo, nem que seja por diversão. Você vai se divertir muito mais se estiver jogando e ganhando, com certeza. ♠