EDIÇÃO 25 » COMENTÁRIOS E PERSONALIDADES

Vegas deixou saudades

Mas nem tudo são flores na Sin City...


Vicenzo Camilotti

Quando escrevi este artigo, já tinha voltado de Vegas. Foi inesquecível, um superaprendizado. Guardarei comigo para o resto da vida quase tudo que aprendi. Em junho vivenciei o melhor e o pior de Las Vegas.
A temperatura na cidade esquentou em todos os sentidos. Saí do marasmo de um “perde-ganha” no limit para o lucro em 90% das sessões. Aprendi que domar o medo e o apego é o maior desafio da alma. Que aquilo que tememos é o que atraímos. Que esperar nada em troca por nosso esforço é a melhor conduta. Que somos o reflexo dos nossos pensamentos. Que moto foi feita pra cair. Que não existe evento bom ou ruim, mas sim a nossa interpretação sobre os eventos.

Depois de dois meses de muito frio em Vegas (cheguei a pegar 3 graus na madrugada, andando de scooter), junho chegou com muito calor de dia e temperaturas amenas durante a madrugada. Junho chegou também para coroar, enfim, o meu sucesso no cash game limit que insisti em jogar a viagem inteira. Como disse no artigo anterior, descobri que rolava um limit muito interessante além dos cassinos básicos, como Bellagio, Venetian, Wynn (que tinham cash game de $4-$8 para cima), em dois cassinos de “locais” – o Gold Coast e o Palace Station. Em outras palavras, eu estava em um ritmo de vida absolutamente adaptado em Las Vegas.

Dormia às sete da manhã, levantava por volta das quatro da tarde, para ir ao cassino às onze da noite. Nesse intervalo, dava pra curtir bastante a cidade, fazer compras, ir à academia, rodar muito, de cabo a rabo, tudo de bom que essa fantástica cidade pôde me apresentar. Algo que me extasiava era o pôr-do-sol e as montanhas que rodeavam a cidade. Ninguém comenta isso, mas a cidade fora da “Strip” (região dos cassinos) tem um visual alucinante. Mas não foi só pela sensação de êxtase que a aventura valeu tanto à pena. Valeu pela sensação de segurança por todo lado, pelos cassinos faraônicos, pelas cardrooms e pelas inúmeras atrações que faziam parte desses templos do jogo legal, o agito de inúmeros eventos que acontecem na Sin City. Valeu à pena o privilégio de passar três meses na cidade dos sonhos de nove entre dez jogadores, pela certeza de que poderia viver tranquilamente do poker em Las Vegas, e pela paz de espírito difícil de descrever que senti nessa cidade.

Sin City, ou “Cidade do Pecado”, é um apelido preconceituoso para estigmatizar uma cidade que cresce ainda em ritmo alucinado, que atrai turistas dos EUA e do mundo inteiro, que tem um custo de vida menor (típico de uma cidade média com todas as opções de uma megalópole), que tem os melhores hotéis com os melhores preços, e que é rodeada quase que somente por casas e condomínios, com estradas bem asfaltadas e iluminadas. Enfim, uma cidade que, só porque tem liberados o jogo e a “casa de massagem”, faz com que se pense que o “pecado” é a sua tônica.

Acredito que o “pecado” seja invenção meramente humana. O que de fato há são escolhas. E elas não são boas ou ruins por si só, são simplesmente escolhas. Se, por um lado, há quem escolha perder dinheiro nos caça-níqueis, há também aqueles que escolhem fazer de Vegas um centro de empregos, turismo e arrecadação de impostos, por exemplo.  O bom disso tudo é o livre-arbítrio para optar pelo que queremos. Falando por mim, escolhi jogar LIMIT – e não me arrependi. O jogo é, de longe, o que atrai o público mais fraco. É extremamente técnico e de pura leitura. Cheguei a falar detalhadamente que a formação de mesas de limit é estimulada em todos os cassinos de Vegas, pelo simples fato de que tem público sobrando pra isso, e que dá lucro violento para a cardroom.

Eu estava muito feliz, ganhando sistematicamente, até que, faltando poucos dias para ir embora, quando eu estava com sérias dúvidas sobre pedir ou não prorrogação do visto (entrei com passaporte italiano, que permite apenas três meses na terra do Tio Sam), sofri um acidente de moto. Às sete da manhã, voltando de um jogo $4-$8 no Palace Station (que fica na Sahara Street, quase em frente onde eu morava), caí com a moto dentro do estacionamento do cassino e quebrei o tornozelo esquerdo. Foi um show pirotécnico de primeiro mundo até chegar ao pronto-socorro, e um show de horrores no hospital.  Logo que caí, chegaram o segurança do cassino, a polícia, a ambulância – tudo em questão de 15 minutos. Os paramédicos me levaram ao pronto-socorro, com todo o cuidado e atenção possível, até que eu pude ver de perto o que acontece com quem não tem seguro-saúde nos Estados Unidos... Apesar dos avisos que recebi, não fiz seguro-saúde para viagem, e estava à mercê da própria sorte. Eles me largaram em um quarto durante trinta minutos sem aparecer um médico, com a porta se abrindo para uma “cobradora” que queria um depósito adiantado pra me atender. Falei que não era para me tratar como criminoso, e que me atendessem no raio-x e chamassem um enfermeiro e um médico que me ajudassem pelo menos a imobilizar o pé e me informar qual a situação do tornozelo, pois nem sabia ainda se tinha quebrado ou se o inchaço todo era apenas uma torção, e, só então, mandassem a conta para minha casa. A “cobradora” saiu da sala e chamou a cobradora-chefe, que ouviu a mesma resposta, só que dessa vez mais firme ainda. Diga-se que, nos EUA inteiro, a saúde é privatizada, mas um pronto-socorro não pode se recusar a atender quem precisa, apenas cobrar posteriormente caso o enfermo não o faça imediatamente, e eles viram que eu sabia disso perfeitamente.

Após o raio-x e a constatação de que realmente tinha quebrado o tornozelo, imobilizaram-no com uma faixa, me deram um par de muletas e o telefone e endereço de uma clínica de ortopedia, à qual fui no próprio dia, de carona. Chegando lá, tiraram mais dois raios-x, e o médico veio me atender. “Acho que vai ter de operar e colocar um pino... Você tem seguro-saúde?” Não. “Você fica mais quanto tempo nos EUA?” Oito dias. “Espere, vou ver uma segunda opinião sobre a necessidade de operação...” Chega em seguida mais um médico, que analisa os raios-x e fala que não seria preciso operar, bastando imobilizar o tornozelo com uma bota ortopédica. Paguei a conta e fui embora, tendo marcado de voltar seis dias depois. Quando estava no carro, o amigo que me deu a carona explicou que, caso houvesse necessidade de cirurgia, que fosse feita no Brasil mesmo. Não entendi o porquê disso, já que os médicos concordaram que não seria preciso. Ele me explicou que tudo nos EUA é mais caro e que, como eu não tinha seguro-saúde e iria embora em breve, eles poderiam ter ocultado o real estado do tornozelo...

Quando voltei, perguntei, por curiosidade, quanto custaria a operação, e eles falaram que, entre pré-operatório, material cirúrgico, mão-de-obra, taxas do hospital e assistência pós-operatória, sairia pela “bagatela” de $30.000 doletas! Sem garantias, não operariam. Esse é o “grande sistema de saúde” do “grande país de primeiro mundo”. Melhor um SUS capenga do que nada: nos EUA, quem não tem grana para tratamento além do pronto-socorro morre, e fim de papo.

Voltei para o Brasil e os dois médicos com que me consultei disseram instantaneamente a mesma coisa ao verem os raios-x: que eu teria que ser operado imediatamente. Estou em Porto Alegre, aguardando os 45 dias de recuperação para poder voltar a andar, apos a cirurgia realizada aqui. Continuo achando que valeu demais a viagem. Foi a melhor experiência da minha vida: mais válida até do que os seis meses que passei em Miami, onde só joguei online. Em Vegas fiquei ao vivo – e vivo – o tempo inteiro.

No final das contas, conheci a fundo a cidade e sei que, a partir de agora, ela terá sempre uma porta aberta para mim. Poderia morar na Sin City quando quisesse, e o futuro é uma caixinha de surpresas, sempre.




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