EDIÇÃO 56 » COLUNA NACIONAL

O rapto do Eduardo Boa Pesca


Pedro Nogueira
Um dia o Eduardo Boa Pesca chega ao Paradiso, na esquina da Itu com a Consolação, acompanhado por um sujeito bem estranho, que certamente nunca apareceu por lá antes. O sujeito está dirigindo o carro do Eduardo Boa Pesca e é muito mal encarado. Ele é o tipo de homem que, se você está andando pela calçada e o vê caminhando em sua direção, sem dúvida vai atravessar a rua, porque as chances são de 2 para 1 de que ele vai tomar a sua carteira. Pode até parecer exagero meu, definir as odds do sujeito em 2 para 1, mas eu apostaria todo o tabaco do Ribeirão Preto nessa porcentagem, pois tenho bom olho para essas coisas.

Bem, assim que o sujeito estaciona o carro na frente do Paradiso, ele desce e vai até o outro lado para abrir a porta do Eduardo Boa Pesca, que está sentando no banco de trás com pose de magnata do café. O Eduardo Boa Pesca, que tem esse apelido não porque seja bom pescador, mas porque sempre pesca uma carta boa no river, especialmente quando está atrás de uma broca, nunca teve motorista – e se tivesse um, definitivamente não escolheria um tão mal encarado quando aquele sujeito. Então a parceirada, eu incluído nesse grupo, fica surpresa ao ver aquela cena.

A noite está agradável, talvez uns 25 graus, e eu estou fumando um cigarro na varanda do clube. Desde que o Padrinho, que é o dono do Paradiso, teve um ataque do coração e foi advertido pelo médico a parar de fumar, ele decidiu proibir cigarro dentro do clube. É claro que, segundo a lei de São Paulo, as pessoas estão proibidas de fumar dentro de qualquer estabelecimento fechado, mas como o Paradiso não é qualquer estabelecimento, pois seu dono é o Padrinho, e é ele quem decide o que é ou não lei dentro dos seus clubes, foi preciso que ele desse o pulmão para a parceirada parar de fumar lá.

Meu cigarro está no fim, mas como o Eduardo Boa Pesca chega ao meu lado e acende um Marlboro, eu pego outro cigarro, pois seria extremamente deselegante da minha parte deixar um parceiro que acabou de chegar ao clube, como o Eduardo Boa Pesca, fumar sozinho. Ele me cumprimenta com um opa, ao qual eu respondo com outro opa, e apesar de eu estar curioso para saber quem é aquele sujeito mal encarado dirigindo o seu carro, não pergunto nada. Nessa cidade, um parceiro que sai por aí perguntando demais pode ficar com fama de abelhudo, algo que decerto não é lucrativo, portanto não me interessa em hipótese alguma.

“O senhor está para frente ou no ferro?”, o Eduardo Boa Pesca pergunta para mim, uma questão razoável para aquela ocasião. E eu respondo dizendo que zerei, pois para variar um parceiro quebrou a minha trinca com um flush no river. Na verdade, digo para ele, estou para ir embora, pois a minha carteira está vazia mais do que um tanto. Aí o Eduardo Boa Pesca arranca um bolo de notas do bolso da jaqueta, dá duas Garoupas para mim e diz assim: “Volta para o pano, porque nada me corta mais o coração do que um parceiro indo para casa antes da meia-noite.”

Bom, é claro que estou surpreso, pois o Eduardo Boa Pesca não é o tipo de parceiro que costuma dar duas Garoupas a um parceiro quebrado, então calculo que ele esteja realmente feliz por algum motivo. Agradeço, e enquanto vou guardando as Garoupas na minha carteira, que já não está mais vazia, o Eduardo Boa Pesca vira para mim e diz o seguinte:

“Vou te contar uma história que aconteceu comigo”, o Eduardo Boa Pesca diz, “que nunca aconteceu com outro parceiro antes. É sexta-feira e estou saindo de um jogo ali na Barão de Monte Mór, uma rua certamente elegante, mas que é bem deserta de madrugada. O meu carro está parado a uns 40 metros do apartamento, e quando saio do portão, dou uma olhada para os lados, pois todo mundo sabe que numa rua deserta de madruga você está apto a ser tomado por algum malandro se não ficar esperto. Como não vejo nenhum, caminho até o meu carro tranquilo, e quando chego a ele, o que me acontece senão dois malandros saem da esquina apontando um berro para mim.

“Eles pedem a chave do carro e dizem para eu sentar no banco de trás, e como não tenho peito de aço e aqueles dois malandros estão me apontando o velho equalizador, faço exatamente como eles mandam. Eles pegam a minha carteira, mas ficam decepcionados quando veem nada senão uma merreca, pois os parceiros na Barão de Monte Mór já haviam levado tudo de valor que tinha dentro dela. Os dois me passam um sermão, dizendo que não era certo um homem de classe como eu andar apenas com essa merreca na carteira, e aparecem com uma proposição de passarmos no caixa eletrônico para eu sacar algum tomate para eles.
“Bom, eu não estou em posição de discutir, então digo a senha do meu cartão e vamos até um caixa eletrônico numa travessa da Marginal. Enquanto um dos malandros desce do carro para sacar o tomate, o outro fica sentado no banco de trás comigo, com o focinho do berro coçando o meu estômago, um local no qual certamente não quero levar tiro, pois tenho uma gastrite terrível e acredito que um pouco de chumbo só faria a dor piorar.

“O primeiro malandro”, o Eduardo Boa Pesca diz, “volta do caixa eletrônico decepcionado, reclamando que só conseguiu sacar duas Garoupas, porque os bancos tiveram essa ideia de diminuir o limite dos saques entre as dez da noite e as seis da manhã, provavelmente para desencorajar gente como eles de raptarem a parceirada. Bem, o malandro decerto não está feliz com esse placar, e ele diz para mim que precisa de mais tomate para comprar uma joia para a sua querida namorada. Eu não quero deixar um malandro, especialmente um que tem uma J.J. Rogan na cintura, infeliz. Então sugiro que, como são quatro da manhã, a gente espere duas horinhas, e daí ele pode sacar todo o tomate que precisa para comprar a joia da sua querida namorada.

“Ele parece gostar da ideia e encosta o carro num terreno abandonado, para esperarmos a hora de sacar o tomate. A companhia daqueles malandros não é muito confortável, então peço a um deles para pegar para mim um baralho que está guardado dentro do guarda luvas, pois embaralhar cartas é algo que sempre coloca os meus nervos no lugar nesses momentos de tensão. Quando o primeiro malandro abre o porta luvas, o que ele vê senão o meu fichário de poker, que sempre carrego comigo para qualquer lugar que vou, afinal nunca sei quando ou onde vai pintar um jogo.

“O malandro pega o fichário e pergunta para mim ‘Você joga poker?’, e eu respondo ‘Ah, aqui ou ali, de vez em quando’. Aí o malandro diz que gosta de um carteado e sugere um pouco de Texas Hold’em para passar o tempo, afinal ainda faltam duas horas para o limite do saque no caixa eletrônico subir. Bom, eu não tenho nenhum compromisso então digo que sim, por que não?, e o segundo malandro, que até agora não tinha aberto a boca, diz que topa também.

“Saímos do carro”, o Eduardo Boa Pesca diz, “e vamos procurar algum lugar para usar de apoio para as cartas, e logo achamos um caixote que serve direitinho para a tarefa. Fechamos o cacife em 200, pois ninguém ali era de jogar de graça, e começamos o nosso carteado no caixote de madeira, iluminado pelo farol do meu carro. Logo percebi que um dos malandros era lunático e o outro era covarde Então, qual foi a minha tática senão blefar no covarde e esperar boas mãos para cercar o lunático, como qualquer parceiro sensato faria numa situação dessas.

“Bem, logo de cara botei os dois malandros no ferro, então eles quiseram aumentar o cacife para 500, para tentar sair do vermelho. Desde pequeno aprendi com meu pai que nesta vida há duas coisas, e somente duas, que você precisa respeitar em qualquer circunstância, sendo uma delas a senhora sua mãe e a outra um parceiro no ferro. Então quando os dois malandros quiseram fazer cacife de 500 e, depois, subir mais ainda para 1.000, eu não podia dizer não a eles, pois seria algo deselegante da minha parte. Só que, quanto mais nós aumentávamos o cacife, num ferro maior eles entravam.

“Quando bateu seis horas da manhã, guardamos as cartas e fomos até o caixa eletrônico, onde o primeiro malandro sacou todo o tomate que precisava para comprar a joia da sua querida namorada. Chegando ao carro, o malandro disse que eu estava liberado para ir embora a pé, e ele já estava dando a partida no carro quando puxei um papel do meu bolso e falei assim para ele: ‘O senhor está se esquecendo do vale.’ Posso até deixar um malandro roubar a minha carteira ou sacar todo o tomate da minha conta sem reclamar, mas em hipótese alguma deixo um parceiro fugir com um vale meu, e todo mundo sabe disso.

“O malandro pede para ver o vale e fica realmente surpreso com o número que está no papel. ‘Mas eu não tenho esse tomate todo’, ele diz para mim, e eu respondo ‘O dinheiro que você sacou cobre um pedaço’. O malandro pergunta para mim se não dá para negociar, e eu respondo que não, então ele faz uma careta e devolve o tomate que sacou da minha conta. ‘E o resto?’, eu pergunto, aí ele me passa todo o dinheiro que tem na carteira dele, e na carteira do outro malandro, e dá para mim. Eu conto aquele tomate todo, que em hipótese alguma é pouco, mas como o ferro é grande, ainda está faltando.

“Ele fala para mim que aquilo é tudo, mas ainda não estou satisfeito, porque não é nada honesto um parceiro apostar o tomate que não tem, e quando ele faz isso, precisa se virar para pagar o vale. Os dois malandros estão desesperados, porque realmente não têm aquele dinheiro, e como não gosto de ver parceiro desesperado, pergunta ao primeiro ‘O senhor tem carteira de motorista?’, e ele responde que sim. Aí pergunto ao segundo ‘O senhor sabe lavar louça?’, e ele também responde que sim. ‘Então os senhores farão alguns serviços para mim até quitar o vale’, eu digo.

“É claro que os dois malandros”, o Eduardo Boa Pesca diz, “que estão acostumados a ganhar a vida na moleza, raptando e roubando a parceirada, não ficam muito animados com aquela proposição, mas com um vale daqueles, eles não estão em posição de discutir, então acabam concordando. Portanto não fique surpreso se, nas próximas semanas, eu aparecer por aí com um sujeito dirigindo o meu carro porque, por mais mal encarado que ele seja, aquele malandro revelou-se um motorista espetacular, ainda mais por estar fazendo esse serviço de graça. E agora, se o senhor me der licença”, o Eduardo Boa Pesca diz, “vou sentar no jogo capado porque estou sentindo que a noite hoje será de forra.”





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