A humanidade sempre se pautou pela incessante busca de significado, como se nada pudesse acontecer “por acaso” ou “por acidente”, como se por trás de tudo tivesse de haver um sentido transcendental. O poker, obviamente, não poderia ficar de fora dessa necessidade de achar porquês em tudo. Há muito se especula sobre as origens das cartas do baralho. Quem seriam os rostos reais por trás dos reis, damas e valetes?
Quem esperava ler aqui histórias mirabolantes e fantasiosas sobre as personagens por trás das figuras das cartas, já adianto: ninguém real (no sentido tanto de realeza quanto de realidade) inspirou os mundialmente conhecidos reis, damas e valetes com os quais damos nossas baralhadas. Portanto, não se pode afirmar que determinada carta corresponda a uma personalidade específica.
A afirmação acima tem como principal fonte o website snopes.com, que serve de referência para tudo que diz respeito a lendas urbanas, folclore, mitos, rumores e informações equivocadas. E talvez a origem das figuras dos baralhos se encaixe nesta última categoria. De fato, ninguém disseminou uma lenda urbana ou rumor, nem criou um mito ou folclore sobre a realeza das cartas. O que aconteceu foi uma interpretação equivocada de uma prática dos manufaturadores de baralhos franceses. Explico.
A confecção de baralhos recebeu inúmeras influências ao longo dos anos, com variações que iam do número de cartas à quantidade e natureza dos naipes. Os baralhos italianos, por exemplo, possuíam 56 cartas, com quatro (e não três) tipos de figuras: rei, dama, valete e servo. Os naipes eram cálices, espadas, moedas e bastões. Com o passar do tempo, a figura do servo foi “descartada” e os baralhos passaram a ter o padrão atual de 52 cartas.
Ao adotarem o baralho, os espanhóis excluíram as damas e, no lugar delas, incluíram os caballeros (cavaleiros de montaria). Os alemães também excluíram as damas, chamando as figuras de könig (rei), übermann (homem superior) e untermann (homem inferior) reais. Os germânicos ainda modificaram os naipes, substituindo os símbolos franco-itálicos por sinos, corações, folhas e bolotas.
Já os franceses foram além: deixaram de fora o übermann e reincluíram a dama; adotaram os corações e as folhas dos alemães (as últimas foram viradas de cabeça para baixo para adquirir a conhecida forma do naipe de espadas); a partir das bolotas conceberam e adaptaram o naipe de paus; e substituíram os sinos por ouros (do francês carreaux, azulejos envernizados usados em igrejas). A partir disso, especulações históricas começaram a atribuir significado a cada naipe, dizendo que cada um representava um setor da sociedade: a igreja, os militares, os burgueses e os camponeses. Mas tudo não passa de suposições.
Quanto às cartas figurativas ou reais, a ideia de que elas foram baseadas em personagens históricas verídicas tem uma razão de ser: um baralho confeccionado por volta de 1567 por Pierre Maréchal, que ainda se encontra preservado no museu da cidade francesa de Ruão, contém inscrições que indicam textualmente quem são as figuras ali representadas, o que fez com que se pensasse que todas as cartas reais tinham sido baseadas nas mesmas personalidades. Contudo, uma análise histórica mais profunda revela que diversos notáveis serviram de inspiração, a depender da época e da localidade.
As primeiras escolhas para as identidades dos reis foram Salomão, Augusto, Clóvis e Constantino, mas, durante a última parte do reinado de Henrique IV (1553-1610), elas foram mais ou menos padronizadas e representavam Carlos Magno (copas), Davi (espadas), César (ouros) e Alexandre, o Grande (paus). Os nomes das rainhas, por sua vez, sempre foi objeto de muita especulação, por não serem tão facilmente identificáveis: Judith, a rainha de copas, é associada à Imperatriz Judite (esposa do filho de Carlos Magno) ou Isabel da Bavária (esposa de Carlos VI e mãe de Carlos VII); Palas (espadas) representaria Atenas, a deusa grega da guerra, ou a heroína francesa Joana d’Arc; Agnès Sorel (a amante de Carlos VII) ou a esposa de Jacó seriam Rachel, a dama de ouros; e Argine (paus), que é um acrônimo para “Regina” (Rainha), seria María de Aragón (esposa de Carlos VII) ou a deusa romana Juno (irmã e esposa de Júpiter, o deus dos deuses).
As identidades dos valetes, por sua vez, sempre permaneceram constantes: La Hire (Étienne de Vignoles, Cavaleiro e Herói da França) como o valete de copas; Ogier (um dos cavaleiros de Carlos Magno em Chansons de Geste, que é levado pela bruxa Morgana le Fay na lenda do Rei Artur) como o valete de espadas; Heitor (herói de Troia) como o valete de ouros; e Lancelot (outro cavaleiro da mitologia Arturiana) como o valete de paus.
Essa prática francesa de associar personagens reais às figuras de seus baralhos chegou ao fim após a Revolução Francesa, no final do século XVIII. Depois de Luís XIV e Marie Antoinette terem sido condenados à guilhotina, símbolos da monarquia passaram a não ser mais bem vindos na nova república.
Quanto ao ás, a carta suprema do baralho, ela representa ao mesmo tempo o número 1, o A, o alpha. Como também o sol, Alá, Deus. Enfim, possui diversos significados, quase todos transcendentais. Não por acaso, ela encerra a ideia de ciclo. Isso justificaria, por exemplo, o straight poder tanto começar quanto terminar com o ás.
Mas fica uma pergunta no ar: não tivessem os revolucionários franceses posto fim a essa tradição, será que as figuras das cartas de baralho continuariam a representar os mesmos personagens? Diante dessa dúvida, vale o exercício de imaginar quem seriam, nos dias de hoje, os reis, damas e os valetes que estampariam nossas cartas. Você arriscaria algum nome? ♠