Um dos maiores tabus do mundo do poker diz respeito à influência da sorte no jogo. Aqui no Brasil, esse tema é ainda mais polêmico, pois qualquer declaração sobre o assunto pode levar as pessoas a acreditarem que poker é um "jogo de azar", fazendo com que uma atividade legal e saudável possa ser vista como uma contravenção delituosa. O fato é ainda mais alimentado quando vemos vencedores de grandes torneios fazendo jogadas não muito convencionais ou até mesmo ruins, dando a impressão de que "o melhor não venceu" e de que a sorte comandou as ações.
Porém, a influência da sorte ou do acaso não é exclusividade do poker. Acontece com todos os outros esportes. Já falei, em outras ocasiões, do exemplo do surfe, em que numa competição, dentro de um limite de tempo, um atleta mais habilidoso pode ser derrotado pela natureza se não encontrar ondas para surfar. Um parafuso de cinco dólares pode significar a destruição de um carro de Fórmula-1 que custa milhões, causando a perda de um título mundial. Várias bolas na trave podem significar a derrota de um grande time para um pequeno. Enfim... Podemos perceber a influência da sorte não só no esporte, como também em todas as outras áreas da vida.
Um dos que escreveram sobre a sorte com maior propriedade foi o italiano Nicolau Maquiavel, historiador e cientista político. Em "O Príncipe", sua obra mais famosa, ele faz uma perfeita associação entre "Virtù" e "Fortuna", que aqui chamaremos simplesmente de Virtude e Sorte. Vejamos o que Maquiavel fala sobre a influência da sorte nas coisas humanas e como lidar com elas:
"Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela sorte e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. A sorte demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e anteparos para contê-la.
Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um príncipe hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso acontece porque o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruína-se segundo as variações desta.
Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por formas diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência, o outro com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e cada um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.
Dois indivíduos agindo por formas diversas podem alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente, um alcança o seu fim e o outro não. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em consequência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua sorte não se modificaria.
Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens obstinados nos seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância. Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a sorte é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia a dominam" (MAQUIAVEL).
Podemos tirar várias lições desses recortes de “O Príncipe”. A primeira constatação é a de que a influência da sorte na nossa vida como um todo é muito mais ampla do que imaginamos, e que a nossa liberdade de ação, consequentemente, fica mais restrita a influências externas do que às nossas próprias decisões. Eu posso estar jogando duas mesas e decidir dar continuation-bets em 80% das vezes nas duas, mas se em uma delas estiver tomando raises nas minhas c-bets, terei que mudar de atitude, independente de gostar disso ou não.
A segunda questão diz respeito ao casamento da sorte com a virtude. Dificilmente haverá uma pessoa "100% sorte". E uma pessoa que seja "100% virtude e 0% sorte" também encontrará dificuldades em se manter sempre no topo. Porém, entre ser 100% sorte e 100% virtude, opte pela virtude, que, no caso do poker, seria a capacidade de domínio de todos os fundamentos do jogo e do metajogo, já que a sorte, como pudemos perceber no próprio texto, muda de tempos em tempos. O recado é claro: aquele que se apoia 100% na sorte, se arruína junto com as variâncias dela.
A próxima questão diz respeito às diversas formas de agir para atingir um determinado objetivo. Quem joga "sempre loose-aggressive" ou "sempre tight-aggressive" pode se colocar numa situação de apuros quando precisar mudar de estilo. "Cautela vs. ímpeto", "agressividade vs. astúcia", "paciência vs. rapidez", enfim, é preciso dominar todo o tipo de ação para que a virtude no jogo apareça com maior clareza. A virtù aqui estará no domínio da mudança de atitude: quando trocar de marcha na mesa?
A última questão, concordo, fica mais no campo da superstição: a sorte prefere os agressivos aos cautelosos. Porém, como até as superstições carregam em si alguma sabedoria, podemos observar que jogadores agressivos estão sempre atuando com mais fold equity do que jogadores passivos. E isso num torneio pode ser um diferencial incalculável no longo prazo.
O assunto rende pano para mangas e na próxima coluna o abordarei novamente, entrando numa questão um tanto quanto mal discutida no meio do poker: jogar torneios "requer" mais sorte do que jogar cash game? Qual a real influência da sorte no longo prazo? Até lá! ♠
“A SORTE DEMONSTRA O SEU PODERIO ONDE NÃO EXISTE VIRTUDE PREPARADA PARA RESISTIR E, AÍ, VOLTA SEU ÍMPETO EM DIREÇÃO AO PONTO ONDE SABE NÃO FORAM CONSTRUÍDOS DIQUES E ANTEPAROS PARA CONTÊ-LA”.
MAQUIAVEL