Estamos começando mais um ano editorial na CardPlayer Brasil, e eu não poderia deixar de iniciar este artigo dando os parabéns à revista não só pela data festiva, como também pelo crescente aumento da qualidade nas publicações de artigos, matérias, colunas e coberturas, que ajudam a torná-la uma das mais conceituadas publicações do ramo em todo o mundo. Se no último ano nossos artigos foram direcionados a jogadores mais experientes, com conteúdo mais técnico e específico, agora vou voltar as atenções para o público iniciante, trazendo, para aqueles que estão iniciando no real money e para aqueles que pretendem migrar do play money, subsídios que possam garantir um início melhor e uma transição mais tranquila.
O título do artigo é sugestivo: Welcome to the game! Minha tarefa aqui nesta coluna é ser sincero e mostrar para vocês exatamente o que está por trás do mundo do poker, um mundo em que você, o cliente, tem que ser muito bem vindo, vez que, na grande maioria dos casos, vai perder dinheiro. Só para exemplificar, vamos dimensionar o que falamos anteriormente em duas das modalidades mais praticadas pelos jogadores, o Sit ’n Go e o Torneio Multi-Table: no sit ’n go, cerca de 30% dos jogadores ficam na zona de premiação, enquanto 70% deles perdem dinheiro. Já nos torneios multi-table, apenas 10% dos jogadores são premiados, sendo que a grande maioria desses prêmios é pequena, não compensando o longo tempo que os jogadores passam disputando o evento. Somente os jogadores da mesa final, em números que variam de 6 até 10 jogadores, é que ganham um valor que faz alguma diferença.
Logo, o que temos de fato é um quadro com poucos ganhadores, muitos perdedores e um abismo enorme entre esses dois mundos. E qualquer semelhança com o mundo real não é mera coincidência, porque o poker, assim como vários outros "esportes" e profissões, segue as mesmas estruturas e os mesmos padrões de relações de todos os outros campos da vida. Esse mundo "feio", para funcionar bem, tem que parecer "bonito". E isso é feito por meio do que chamamos de ideologia.
Quando, por exemplo, compramos um tênis estrangeiro de marca por um preço relativamente acessível, não conseguimos por muitas vezes enxergar que por trás do "made in Singapore" da etiqueta existe uma rede de exploração de trabalho escravo e infantil que é responsável não só pelo preço relativamente acessível, como também pelo desemprego causado pelas fábricas de tênis brasileiras que fecharam por não poderem competir em preço, já que não podem legalmente explorar o trabalho escravo e o infantil. E o que mascara isso é a ideologia, mais especificamente, nesse caso, a da globalização. Nesse sentido, a ideologia é um instrumento de dominação que age por meio do convencimento, e nós veremos como isso funciona no poker.
Em primeiro lugar, o que eu gostaria de deixar claro é que o mundo do poker pode ser realmente bonito para você, como é para poucas pessoas. Só que, para isso, você precisará reconhecer o lado feio, pois, uma vez estando lá, a ideologia vai fazer esse lado feio parecer bonito para você, vai lhe alienar e lhe inserir na engrenagem dessa máquina em que muitos perdem e poucos ganham. Você quer estar de que lado? Do lado das minorias ou do das maiorias? Você pode não perceber, mas faz esse tipo de escolha diariamente em vários campos da sua vida.
A questão que vamos responder então é: como a ideologia vai agir para tornar esse mundo feio bonito para você? Eu lhe respondo que ela vai lhe alienar através da disciplina. Uma disciplina que aniquila a sua individualidade pela imposição de hábitos que padronizam o jogador e tornam seu jogo controlável, compreensível e dedutível para que aqueles que ficam no lado "bonito" do jogo possam manter dominados aqueles que ficam no lado "feio", sem que eles possam perceber. Quem domina as técnicas do jogo no nível do conhecimento tem o poder. E quem tem o poder domina quem não tem. E o mais interessante é que essa dominação não se dá no plano da força, ou seja, da dominação física tradicional. Aqueles que dominam o conhecimento procuram exercer seu poder justamente da forma contrária: amansando seus oponentes, tornando-os adestrados, seguros e previsíveis. E como eles fazem isso? Fazem-no através do que chamamos "enunciados de poder", ou seja, uma frase, um texto, um artigo, uma notícia, uma reportagem, um filme, uma vídeo-aula, um coach, uma peça publicitária ou um discurso podem se converter em instrumentos de dominação.
Você, para sair do "lado negro", deve ter seu senso crítico aguçado. Deve saber diferençar informação de conhecimento. No mundo do poker, temos muitas informações nesses instrumentos que enumerei no parágrafo anterior, mas essa informação só se torna conhecimento no momento em que você consegue contextualizá-la e internalizá-la, dando a ela sentido. E você não vai conseguir fazer isso separando teoria de prática. Então aqui tiramos a primeira conclusão útil para você que está iniciando no poker escapar do "lado feio" e ficar no "lado bonito":
• Não existe conhecimento sem informação e a informação não se torna conhecimento se não for contextualizada a internalizada, coisa que nunca vai acontecer se você não unir teoria e prática. Estude e pratique ao mesmo tempo.
A próxima questão nos remete diretamente aos "enunciados de poder" mencionados anteriormente. Como a ideologia é voltada à criação/manutenção de relações de dominação por meio de quaisquer instrumentos, não seja inocente de pensar que instrumentos como livros, textos e artigos estão ali só para lhe ensinar a jogar, porque na grande maioria das vezes não estão. Eles existem também para lhe padronizar, para fazê-lo jogar de maneira não criativa, robótica e explorável, levando-o a aceitar que essa é a maneira correta de se jogar e, mais do que isso, que só existe uma única maneira correta e matemática de se jogar.
Quantas vezes você acha que vai ler frases como: “Você deve sempre controlar o pote!”, “Aqui o certo é abrir raise”, “Não existe bet-fold nesse spot!”, “Sua 3-bet foi muito ruim!”, “Essa variância é normal!” etc. Essas frases parecem verdades absolutas. E quando emitidas por um jogador profissional ou por uma pessoa muito conhecida num fórum de poker, então, ganham uma dimensão ainda maior. Algumas delas viram verdadeiros dogmas: não podem sequer ser contestadas!
Quem falou que você deve sempre controlar o pote? Baseado em quê essa pessoa disse isso? Por que o limp de AA no UTG é um movimento "superado"? Por que essa variância é normal? Não seria eu que estaria jogando errado? Criem o hábito de não concordar de imediato com as informações que vocês obtêm sem antes procurar criticá-las. Duvidem de dogmas e de verdades absolutas porque, no fundo, elas só servem para lhe adestrar e lhe tornar um jogador padrão e previsível. E dessa passagem nós tiramos nossa segunda máxima para esta coluna:
• Cuidado com a informação dogmática, impositiva, que não admite ser contestada. Ela pode estar querendo limitar seu jogo. Conheça e entenda os conceitos, mas fique desconfiado das normas, das tabelinhas, dos padrões e das pessoas que falam que tal coisa é correta e só pode ser feita daquela determinada maneira. Aprenda a entender as informações, a criar seu conhecimento e a tomar suas próprias decisões no jogo, sem depender de manuais, tabelas ou programas de estatísticas.
Agora, você que está começando a jogar real money e você que está migrando do play money, já está preparado para enxergar o mundo do poker através da máscara ideológica. O próximo passo é se preparar para adquirir o conhecimento necessário para ficar do "lado bonito" do jogo e isso só depende de você e da sua competência em buscar informações em boas fontes e transformá-las em conhecimento sem entrar na mesmice do jogo padronizado.
Quem quiser falar comigo, é só dar follow no Twitter @christiankruel. Abraços.