EDIÇÃO 98 » COLUNA NACIONAL

Viva o amadorismo!

Um ponto de vista diferente de tudo aquilo que você já viu


Daniel Mendonça
A comunidade do poker costuma dividir os jogadores em duas categorias: a dos profissionais e a dos amadores. Embora os últimos representem a imensa maioria dos praticantes, o protagonismo midiático é dos profissionais. Inúmeros artigos, livros, vídeos, palestras dão dicas de “como se tornar um profissional”, e em alguns momentos o amadorismo é visto apenas como uma etapa a ser superada, um obstáculo no caminho rumo ao Eldorado do poker.
 
Ouvimos rotineiramente as expressões “serviço amador” ou “puro amadorismo” e logo as associamos a algo malfeito, demonstração de incompetência, falta de habilidade. Amador, porém, como a própria raiz da palavra indica, é aquele que tem muito amor por uma arte ou ofício; que se dedica a algo por gosto e não por profissão. Nesse sentido o amadorismo deve ser louvado, pois dedicar-se a algo por amor e não por necessidade de ofício é algo que todos devemos praticar no dia a dia.        
 
É absolutamente comum, em qualquer modalidade, o abismo numérico entre amadores e profissionais. Entre os praticantes de futebol, boliche, tênis, basquete, sinuca, vôlei ou qualquer outro esporte a proporção de profissionais será sempre muito menor em comparação com os que o encaram como um hobby, uma forma de lazer. Porém, a particularidade do mundo do poker – e que o torna tão fascinante – é que profissionais e amadores muitas vezes transitam pelos mesmos espaços, disputam os mesmos torneios; e o melhor de tudo é que amadores têm totais condições de vencê-los. É algo como se tivéssemos alguma chance de vencer Roger Federer num tie-break valendo título. 
 
É nos torneios semanais de clubes, porém, que o amadorismo se expressa em sua plenitude. Neles o jogo flui sob uma lógica própria, uma atmosfera generosamente antiprofissional, em que quase tudo está valendo. Vale soltar falinha para o dealer, vale fazer slowplay excessivo, vale sujar as cartas com a gordura da porção de fritas, vale beber várias cervejas ainda antes do break – e no break, é claro, vale contar parada até para o diretor do torneio. 
 
Também vale mudar os tradicionais termos do poker com eventuais variações prosódicas. Assim, está liberado completar um “street” (ou “sequenciar”), “enquadrar o ás”, “embaralhar” o parceiro, entrar de limp com uma “dupla de ás”, acertar um “flesh” com um valoroso “sweet connector” e até mesmo “shovar all-in”. 
 
O profissional que se aventurar nesse universo se sentirá como o personagem de John Wayne em “No tempo das diligências”: sabe que, embora seja o mais preparado do grupo, terá de se desviar de muitas flechadas para sobreviver. Além disso, enfrentará adversários mais destemidos que o garotinho de “Mad Max 2”, mais obstinados que Jack Bauer, mais audaciosos que Maverick e que farão jogadas mais estranhas que as letras de Jorge Vercilo. 
 
Por ser o mais preparado, o profissional torna-se o alvo principal da peleja; ao puxar vários potes contra um poker pro, o amador se sente como Luis Ramírez Zapata, autor do único gol de El Salvador em uma Copa do Mundo, façanha muito comemorada mesmo com a derrota de seu time por 10 a 1. Daí porque para o jogador recreativo um troféu de freeroll semanal pode ter a mesma dimensão de um bracelete da WSOP. Para profissionais os resultados no longo prazo é que importam; para amadores, ao contrário, a glória imediata suplanta as derrotas acumuladas.  
 
Apesar de não terem importância esportiva a ponto de virarem pauta da mídia especializada, torneios semanais de clube são narrativas que expressam a grandeza do poker como uma prática saudável, um espaço de sociabilidade e encontros onde se coloca a diversão como objetivo maior e se exerce a política da amizade. Porque amizades são como fichas de poker: quanto mais você tem, mais fácil ganhar novas.      
 
Daniel Mendonça é jornalista, escritor e praticante de poker
 



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