EDIÇÃO 84 » COLUNA NACIONAL

O conflito de Colman


Fábio Eiji
Nas últimas semanas, quem tem acompanhado as mídias de poker, já sabe o que fez o campeão do The Big One for One Drop, Daniel Colman, e a repercussão que isso gerou (ver CardPedia, página XX).
Colman venceu o torneio com buy-in de US$ 1 milhão e então recusou-se a dar entrevistas para as mídias de poker e, inclusive, de tirar a foto com uma montanha de dinheiro e com a mão vencedora, como usualmente acontece — no fim, ele acabou cedendo e tirou a foto, mas com uma expressão não muito feliz.
 
A mídia especializada, principalmente o maior site de notícias de poker do mundo, o Poker News, criticou duramente a atitude de Colman, que se pronunciou menos de um dia depois no fórum TwoPlusTwo, explicando os motivos pelo qual tomou aquela atitude.

A despeito dos argumentos simples e rasos de Colman, suas ideias e atitudes, no contexto de um jogador extremamente vencedor ao longo da carreira, têm enorme valor, já que trazem à tona questões muitas vezes ignoradas ou até mesmo camufladas pela grande mídia do poker.

Colman foi criticado — covarde e exageradamente por uma parte; e educada e lucidamente por outra — de várias formas pela mídia, personalidades e interessados em geral do meio. O que não podemos, ao meu ver, é deixar que essas críticas nos impeçam de aproveitar uma bela oportunidade de elevar o nível de discussão acerca de aspectos do poker, muitas vezes subestimados em prol da luta pelo reconhecimento do mesmo como atividade lícita elevada à condição de esporte (da mente, nunca se esqueçam).

Alguns pontos que me chamaram a atenção e que sugiro maior destaque são:

Colman vive um conflito ético (e isso é legítimo)

O fato de Daniel ser um jogador extremamente vencedor, não o impede de conviver com um conflito, dentro do que ele considera ser a postura correta de uma pessoa ou profissional. Você ser possuidor de uma casa, um carro ou uma fazenda são características que não podem (e não devem) lhe impedir de refletir sobre os problemas que enfrentam as bilhões de pessoas que não têm acesso a terra, por exemplo. Desfrutar dos prazeres de uma churrascaria, não lhe torna incapaz de olhar pelos que não têm o que comer diariamente.

Pelo que me informei a respeito de sua carreira, Colman não tem um histórico exemplar de comportamento, principalmente nas mesas online. Isso não significa que ele não possa amadurecer, perceber o quão idiota são essas atitudes e mudar para melhor. Inclusive, foi elogiado por seu xará Daniel Negreanu nesse sentido. 

Colman é jovem. Tem todo o direito de errar. Mas tem a obrigação de crescer. 

Colman não levantou nenhuma bandeira 

Ele não procurou a grande mídia para se explicar. Não saiu dizendo aos jornais comuns que o poker deveria ser severamente regulamentado. Não palestrou na sede dos Jogadores Anônimos.

Colman se manifestou, após sofrer ataques, em um fórum especializado, frequentado por jogadores e interessados em poker. Dessa forma, entendo que suas palavras têm um ar muito mais “confessional” do que qualquer outra coisa. Essa forma de se expressar, até mesmo ingênua, foi muito mal interpretada. Entendo que ele não pediu o fim dos cassinos, apenas explicou o motivo de seu posicionamento: rejeitar a ideia de ter sua imagem vinculada à promoção do poker de uma forma negativa — o que nos leva ao próximo ponto.

O “lado negro” do poker

Como qualquer atividade, especialmente as que envolvem competição e dinheiro, o poker tem, sim, seu lado negro. Há pessoas que perdem grandes montantes que não poderiam. Há jovens que abandonam seus estudos e criam um ambiente conflituoso com os familiares para se dedicar ao jogo. Há ainda chefes de família que se iludem com resultados a curto prazo e expõe seus cônjuges e filhos à uma variância avassaladora. 

Entendam: eu não acho o fim do mundo que um jovem tranque a faculdade para experimentar algo novo por um período, tampouco que as pessoas corram atrás de seus sonhos — principalmente, se o que fazem atualmente as tornam infelizes. Mas eu duvido que a maioria dessas pessoas têm a real noção do que seja de fato ou da potencialidade que tem a variância no poker. 

Minha experiência diz que grande parte dos profissionais de poker do Brasil, inclusive jogadores renomados, faz uma péssima gestão de bankroll e já quebrou ou esteve perto disso. Alguns, mais de uma vez. Porém, o que vemos nas capas de revistas e nos boletins online se resumem a uma parte, às vezes ínfima, da realidade de um profissional de poker, especialmente de torneios. O trabalho da mídia do poker, falando da realidade brasileira, tem sido de apontar majoritariamente os benefícios e exemplos de sucesso, camuflando — com frequência assustadora — as histórias tristes que acontecem diariamente nos clubes e salas online. Isso é até compreensível, visto que: 1) como consumidores de poker, tendemos a realmente querer ouvir as boas histórias e nos espelhar nos grandes vencedores; 2) a história do poker no Brasil é curta e, estrategicamente, precisou assumir uma postura de contrapor os preconceitos arraigados na cabeça do cidadão comum, que considera o poker um jogo tão complexo como a roleta.

Por fim, convido os leitores e leitoras, amantes do poker, que levantem essas e outras questões com colegas interessados, seja nas mesas de um home game, seja assistindo a um programa da WSOP na televisão. Mas não deixem o assunto morrer. Atacar o Daniel Colman é a melhor maneira de “empurrar para debaixo do tapete” um assunto que assusta muita gente, mas que deve estar constantemente em pauta.

O poker é um jogo belíssimo e, na medida, lugar e com as companhias certas, tem tudo para ser saudável, social e desafiador. Mas também é um jogo que envolve dinheiro e, quando passa dos limites aceitáveis, pode nos transformar em pessoas que não gostaríamos de ser.



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