A intimidade com o baralho surgiu ainda no berço. Quando bebê, já demonstrava qual seria a sua vocação na hora de escolher o seu brinquedo preferido. Desde então, vem colecionando troféus e títulos, e hoje é sinônimo de competência e de talento nas mesas de pano verde.
Nessa última World Series Of Poker, Caiaffa conseguiu uma brilhante 55ª colocação no Main Event, tornando-se o brasileiro mais bem colocado na história do evento. Neste especial, ele nos concedeu com exclusividade o seu diário pessoal, escrito durante o torneio em Vegas.
Você agora vai entrar na mente deste grande jogador, e conhecer seus pensamentos e impressões sobre o torneio, as mãos que ele considera mais importantes, e tudo mais que a sua memória tratou de guardar para a posteridade, nesse inesquecível feito para o poker do Brasil.
Dia 1 – Insegurança e Reflexão
“Sempre ouvi dizer que estrear em competições esportivas dá frio na barriga, mas eu não senti nada. Comecei numa mesa muito difícil, realmente de alto nível. Me lembro bem de dois europeus: o inglês Nicolas Levi, e o sueco Martin Wiklund. Eles são muito bons e jogaram mãos realmente lindas! São jogadores agressivos e imprevisíveis, que deram um show à parte.
Confesso que entrei um pouco perdido e não estava jogando bem. Entrava em muitos potes sempre que estava em posição, independente das minhas cartas. Além disso, estava respeitando demais os dois europeus que citei acima e, após dois movimentos errados, caí das 20k iniciais para apenas 6k – perdi 70% do meu stack usando a estratégia errada. Ainda bem que veio o dinner break...
Cheguei num restaurante dentro do cassino, e lá estavam cerca de 20 brasileiros, numa mesa enorme. Muito legal ver a galera toda reunida! Arrumei um espaço ali e cheguei a comentar que estava muito difícil acompanhar o ritmo da mesa. Leandro Brasa até falou comigo: “Caiaffa, eles jogam muito, mas você também joga! Vai lá e mostra o que sabe”. Foi muito importante ouvir aquilo: cancelei meu pedido do jantar e resolvi ir para um lugar onde eu pudesse ficar sozinho e pensar um pouco.
E foi a decisão mais correta que eu tomei hoje. Esse meu tempo sozinho foi importante e, pela primeira vez, senti uma energia vinda de fora. Logo no reinício do torneio, já fiz uma jogada que deu certo e aumentou muito minha confiança: o sueco deu um raise de 3x o blind, o inglês deu call. Eu estava no big blind e voltei all-in por cima dos dois com 10-4 de ouros, encaixando meu primeiro resteal no torneio. Passou mais um pouquinho e finalmente eu dobrei: com A4 no SB eu apenas completei, o BB deu check. O flop veio 4-4-6. Eu saí atirando metade do pote e ele deu call. Turn J. Dei check, ele apostou e eu fiz 3x a aposta dele, que me voltou all-in sem pensar! Ele estava com 2-4 e também tinha trincado. Bateu uma dama no river e fui pra quase 20k!
Depois, estava no cut-off com 5-5, blind 200-400. Fiz tudo 1.100. O sueco no button fez tudo 3300. Eu até podia ter voltado all-in pré-flop, já que ele era muito agressivo e podia estar fazendo um re-steal com quaisquer duas cartas, mas optei por somente pagar. O flop veio 5-8-Q, com duas de paus, e eu resolvi dar fazer “donkey bet” e sair apostando, pois tinha certeza de que ele ia me dar reraise. Coloquei 2k e ele fez tudo 6k. Eu dei call. Turn K. Resolvi atirar só 2k num pote de 18k pra parecer blocking bet e ele achar que talvez eu estivesse no flush draw... Mais uma vez ele fez tudo 6k. Eu voltei all-in, que era só mais 4k, e ele deu insta-fold! Ou seja, ele estava blefando!
Faltando uns 5 minutos para o final do Dia [1-C], ainda no blind 200-400, eu estava com 35k e fiz 1.200 em utg, com AK off. O inglês, Levi, deu call no button. Eu sabia que ele tinha feito esse call para jogar em posição comigo. O flop veio A-J-9. Eu fiz uma continuation bet de 2k e ele deu insta-call! Na hora pensei que ele podia estar fazendo um float. Turn J. Pedi mesa com a certeza de que ele ia apostar se estivesse mesmo fazendo isso, e ele colocou 4,5k. Dei call. River 6. Pensei um pouco e cheguei à seguinte conclusão: ‘ele pode até ter esse J, mas, se tiver, vai fazer uma value bet, eu vou dar só call – vou ser muito fatiado, mas vou continuar vivo. Se ele realmente flutuou, vai ter que apostar de novo para ganhar o pote, e assim posso extrair um bom valor desse blefe sem me comprometer tanto’. Dei check, ele apostou 9k, eu dei call, e ele MUCK! Em duas jogadas, fiz dois top players cometerem erros contra mim. Fui para 50k e terminei bem o dia de hoje!”
Dia 2 – Deu tudo certo!
“Impossível ter sido melhor. Foi um dia inteiro de decisões corretas, cartas certas no momento certo e a confiança aumentando a cada minuto. Ainda no primeiro level do dia, mudei de mesa e logo em uma das primeiras mãos aconteceu uma jogada muito interessante: blinds 300-600, um jogador seguro abriu raise de 1700 no utg. Então o utg+1 deu call, o cut-off fez raise de 4500 em cima deles e eu, no button, recebi KK! Dei um reraise para 11.200 fichas, e o utg rapidamente mandou all-in! O utg+1 e cut-off deram fold. O all-in dele era mais 26k e me machucava bastante. Pensei por alguns minutos, receoso em dar de cara com um AA. Mas dei call e encontrei QQ! O flop veio 2-3-4, o A no turn abriu possibilidade de empate, mas o 6 no river me tranqüilizou e me mandou pra quase 100k.
Em seguida veio a mão em que eliminei Max Pescatori, Pro do Full Tilt. Um jogador agressivo deu raise e eu, no button com KK, dei somente call, sabendo que o Pescatori ia mandar um squeeze. Não deu outra: ele voltou all-in por cima de nós dois, achando que eu tinha dado call só para jogar em posição contra o cara que deu raise... O primeiro a falar deu fold, eu paguei e Pescatori me mostrou 2-5 off – eliminei o italiano!
Para fechar meu churrilho nessa mesa, outra mão interessante. Eu era o chip leader da mesa com 105k, e tinha um jogador com 81k. Esse cara, nos blinds 400-800, atirou 4.500 no utg+1 – um raise estranho, de mais de 5x o blind. Até então, ele não havia dado um raise tão alto. Chegou minha vez de falar e eu vi QQ no SB. Achei que o cara pudesse ter AK e resolvi somente dar o call e sair atirando para controlar o pote, qualquer que fosse o flop; pois, no caso de tomar um reraise, poderia correr sem perder muitas fichas, afinal, ele era o único jogador ali que me machucaria bastante. Enfim, dei call e o flop veio lindo: Q-9-3 rainbow! Como eu já estava preparado para atirar independente do flop, fiz uma ação meio mecânica e apostei 5k. Para minha surpresa – e alegria – ele voltou insta-all-in! Que sonho! Eu dei call, ele mostrou 99 e ficou com apenas um out! Pela primeira vez na vida eu saí comemorando antes da hora, não quis nem saber! Saí gritando como se já tivesse ganhado, e eu nunca faço isso! Mas era um big pote... e era na WSOP! O dealer esperou que eu voltasse antes de abrir as duas cartas finais – que não ajudaram o cara, claro! Fiquei grande, com 175k.
Logo depois mudei de mesa novamente, e uma mão não me sai da memória. Nos blinds 500-1000, eu estava no SB e completei com 10-5 de ouros. O BB, um jogador ultra-tight, deu check, e o flop veio 8-7-2 com duas de ouros. Eu dei mesa e ele apostou o pote. Paguei. No turn a Q♦, que me deu um flush! Mais uma vez pedi mesa e ele apostou 5k! Eu sabia que ele tinha uma mão boa, mas não melhor do que a minha, e voltei um reraise de 17k. Ele pensou muito e pagou. No river veio um 3♠ – minha leitura foi excelente nessa hora. Eu podia jurar que ele também havia feito um flush, mas menor do que o meu, por isso apostei 50k, o all-in dele. Afinal, ele pagaria se tivesse mesmo flush. Se eu tivesse dado uma value bet de 20k ou o colocasse em all-in com 50k, ele pagaria minha aposta de todo jeito. Foi pensando nisso que apostei forte para extrair o máximo possível de fichas dele, e minha overbet também ficou com cara de blefe. Ele pensou por muito tempo e deu call... O coitado realmente havia acertado o flush, com 8-6, e eu fui para 300k. Fiquei gigante!
A partir desse momento veio um monte de gente tirar foto, perguntar meu nome, de onde eu era... Foi incrível! Era só eu me distrair que vinha alguém da imprensa tirar foto. Eu tava entre os 10 do Main Event! Quando eu vi meu nome no telão do torneio, entre os dez melhores, foi realmente incrível, que sensação bacana! Aproveitei meu stack para jogar mais agressivo, já que eu sabia que tinha muita gente ali se segurando para chegar ao Dia 3: subi para 334.500 fichas e estou indo muito bem para o dia de amanhã.”
Dia 3 – Vamo que vamo!
“O frio na barriga hoje apareceu. Acordei às 7 da manhã, depois de dormir somente três horas – estava ansioso. Entrei no orkut, msn e todos os blogs de poker possíveis. Quis sentir a energia da galera após eu passar para o Dia 3 entre os líderes. Acho que as pessoas nem têm idéia de quanto isso é importante. Esse ritual de entrar na internet e sentir essa energia virou parte da minha rotina diária, e até o último dia eu farei questão de entrar na net para sentir isso. Quando entrei no orkut e vi que meus amigos e familiares estavam indo pra minha casa no Brasil torcer por mim, foi demais! Estavam todos vestidos a caráter, com roupa do best [poker] e óculos escuros. Fico emocionado ao ler todas as mensagens que recebo, e isso está sendo meu maior combustível. Não é fácil dormir apenas três horas por dia e enfrentar essa maratona...
Dia 4 – Dança do Macaco
“Hoje já joguei entre os premiados, e na minha nova mesa estava o Hevad “Rain” Khan, que fez final table ano passado e ficou famoso pela ‘Dança do Macaco’… Demorei quase duas horas para jogar a primeira mão e, quando aumentei, tomei reraise. Em seguida, aumentei de novo e tomei outro reraise – larguei as duas vezes. Definitivamente, eu não estava sendo respeitado, mesmo ficando quase um bom tempo só dando fold.
No segundo level veio um KK. Blinds 3.000-6.000, eu aumentei para 19k e tomei dois calls. O flop veio T-9-4. Atirei 30k, um cara deu fold e o BB voltou all-in de mais 120k. Dei call e ele mostrou AJ blefando! Pô, não estavam me respeitando mesmo, mas que sonho de parceiro. Pena que logo no turn veio o ás do cara e eu caí pra 170k, ficando abaixo da média pela primeira vez desde o fim do Dia 1 – tiltei.
Logo na mão seguinte, aumentei de A7. Kahn pagou, e o flop veio Q-J-3. Dei bet, e ele call. Turn 2. Dei bet forte e ele me voltou all-in. Larguei e fiquei com 50k. Eu fiquei baqueado e short stack, mas sabia que estava vivo! E falando em Khan, depois dessa mão do A7, eu simplesmente detonei o cara! Na mão que eu virei BB, ele deu raise de 18k, e eu vi meu sonhado AA – dei all-in de 48k. Ele pagou de J7! Bateu um sete no flop e mais nada depois. Literalmente na mão seguinte, ele deu raise de 18k e eu voltei all-in de mais de 100k. Ele pensou e largou AJ. Então mostrei meu AJ pra ele! [risos]
Mais um pouco e ele aumentou de novo. Vi 55 e anunciei all-in. Essa ele pensou por muito tempo e foldou. Mais um 55 na minha mão e mais um all-in contra o Khan: a essa altura eu já tinha voltado pra quase 200k.
Então aconteceu um negócio interessante, detalhes incríveis do poker e do que estava reservado para mim. Blinds 4.000-8.000, MP deu raise de 22k, e eu tinha 66 na mão. Cheguei a pegar minhas fichas pra mover outro all-in, mas desisti. Não quis nem pagar... O japonês do meu lado deu call e o flop veio J-6-6! MEU DEUS! Eu teria feito four no flop! O cara apostou, e o japa voltou um caminhão de fichas... Juro por Deus que na hora eu pensei: ‘Nossa, queria tanto poder voltar no tempo e jogar diferente aquele 66...’ Enquanto pensava nisso, puxei minhas cartas e vi o mesmo 66! E o mesmo cara apostou 22k de novo! O cara do lado dele deu call. Aí veio na minha mente: ‘Isso é coisa do destino, não é possível!’ e dei all-in de 180k. Khan, que não tinha nada a ver com a história, deu insta-call... ‘Me f***!’, pensei. O cara que deu raise, depois passar um tempo ‘no tanque’, deu fold. O outro também largou. Abri 66 e Khan mostrou surpreendentes AQ – realmente eu não estava sendo respeitado! Eu até saí de perto, não queria nem ver... Fui ao banheiro e, quando eu estava voltando, veio um cara da organização me chamar e falar umas coisas. Pra variar, não entendi p**** nenhuma do que ele falou. Eu só perguntava: ‘ganhei ou perdi?’ Mas na verdade ele foi me buscar porque o dealer não podia abrir as cartas sem minha presença. Cheguei lá, todo mundo me esperando, TV, Imprensa, Dealer, Kahn... [risos]
Dia 6 – Sensação de Missão Cumprida
“Hoje o dia começou diferente. Por ser domingo, a lanchonete em que eu comia toda manhã estava fechada, a passagem que ligava meu hotel ao Bellagio (onde eu pegava táxi todos os dias) também estava fechada. Não comi nada e fui pegar o táxi no hotel Paris, debaixo do Arco do Triunfo – local que veio bem a calhar para fechar minha participação no Main Event. Não vou colocar a culpa pela minha eliminação na quebra da rotina, estou apenas relatando o que aconteceu. Pela primeira vez na vida, passei a acreditar que algumas coisas não acontecem simplesmente por coincidência.
Mas tenho a sensação de missão cumprida. Estou triste por ter errado, mas eu estou ciente de que cheguei ao meu limite físico, técnico e psicológico, talvez por isso tenha cometido os erros que cometi. Errei coisas que não costumo errar. Não quero mais me lembrar do dia de hoje. Tenho certeza de que todos eles foram absolvidos e de que ganhei experiência.
Vou agradecer a todas as pessoas que passaram esses dias comigo, torcendo, que perderam noites de sono apertando F5 no teclado do computador. Agradecer minha esposa Luciana e minha filha Mila. Aos meus pais, irmãos, primos, amigos, que foram torcer na minha casa em BH. Ao Best Poker por todo o apoio durante esses dois anos de parceria. Aos meus companheiros de quarto em Las Vegas, que viveram aquele momento comigo. Aos ‘cavalos’ que acreditaram no meu resultado. Ao pessoal do pokernews, que esteve sempre ao meu lado”
Enfim, cresci – como jogador e como ser humano. Agora é hora de voltar pra casa e começar a pensar na Série Mundial do ano que vem.”
Pois é, pessoal, foi mágico! Não tem como definir meu Main Event da WSOP de outra maneira. Foram seis dias que mudaram minha vida, e para melhor. Não apenas pelo prêmio ou pelo reconhecimento. A mudança aconteceu porque eu aprendi muito, e passei a acreditar em coisas que eu jamais imaginei pudessem existir. A saudade que senti do Brasil me fizeram dar mais valor à minha família e meus amigos, e tenho certeza de que a energia positiva que me mandaram durante o torneio fizeram com que eu chegasse tão longe.
No total foram 30 dias em Las Vegas. E nesse tempo, minha filha, com apenas seis meses, aprendeu a fazer coisas como engatinhar, soprar e bater palma – pequenas coisas que não pude presenciar, e que são muito importantes para mim. De um jeito ou de outro, eu sabia que o fato de eu não estar presente naquele momento não havia sido em vão. Sabia que havia algo reservado para mim. Destino? Talvez. Eu simplesmente sentia que algo excepcional estava por vir... e realmente veio. ♠