É meia-noite numa terça e estou encostado no balcão do Esquilo’s, na Itu com a Consolação, quando quem entra pela porta senão o Fabinho Dez-Por-Cento, que é chamado assim porque está sempre dentro das piores estatísticas.
Até onde eu sei, por sinal, o Fabinho Dez-Por-Cento poderia se chamar Três-Por-Cento, ou Um-Por-Cento, ou até mesmo menos do que isso, porque se existe a chance de algum golpe dar errado com alguém, ele certamente dará com o Fabinho Dez-Por-Cento.
Sempre que o Fabinho Dez-Por-Cento aparece, ele tem uma história triste para contar de como perdeu um pote para um out sujo no river, ou às vezes no turn, também. Em todos os anos que conheço o Fabinho Dez-Por-Cento, aliás, ele nunca perdeu um pote sequer para um out limpo, o que é uma estatística muito cruel, sem dúvida, para um jogador de pôquer.
Assim que o Fabinho Dez-Por-Cento me vê no balcão do Esquilo’s, ele me cumprimenta com um largo olá. Mas, por mais largo que seja o olá do Fabinho Dez-Por-Cento, ele é sempre um olá triste, capaz de fazer uma quadrilha de ladrões de banco chorar. E, ainda que você consiga segurar o choro no olá, certamente vai ceder quando o Fabinho Dez-Por-Cento contar alguma proposição de 100 para 1 que aconteceu com ele na véspera, como um tumor aparecendo na canela esquerda ou a sua querida namorada tomando o vento para ficar com o crupiê bandido que o quebrou com um out sujo no sábado anterior.
O Fabinho Dez-Por-Cento é um parceiro pequeno e barrigudo, com poucos fios de cabelo preto na cabeça e a barba por fazer. Ele fala rápido, mas com uma voz baixa e triste, tão triste quanto uma garrafa vazia e tão baixa como um tapete gasto. Assim que ele chega ao meu lado no balcão do Esquilo’s, onde estou esperando a minha vez de entrar na mesa de sinuca, já abaixo a orelha para escutar melhor o que ele está falando.
“Se eu te contar a mão que aconteceu comigo ontem você não acredita”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz para mim. Eu olho para a lousa e vejo três nomes antes do meu na fila da sinuca, então não tenho opção senão ouvir a história triste dele.
“Imagine que a mesa do Paradiso está baleada e estou dois mil para frente, num chorrilho espetacular”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz. “Aí recebo vala e sete de copas, e todo mundo sabe que, no chorrilho, essa não é uma mão de se descartar, né? Atiro o pote e só um parceiro paga. O flop vem 289, com duas copas, um sonho. Estou na broca e no flush draw, então mando bala e o parceiro call. No turn, um lixo qualquer. Tô colocando o parceiro num nove fraco, então mando mais bala, e ele pensa bastante antes de pagar de novo. Bate o dez no river e acerto a minha broca. Empurro a tampa, mas a ficha do parceiro cai no pano mais rápido do que uma bigorna em queda livre. Sabe o que o vilão tem?”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz. “Vala e dama. Acertou o nuts e tomou 3k de mim. Assim, com um out sujo no river.”
Nesse momento ele suspira, e eu suspiro junto, porque é realmente triste acertar uma broca no river e descobrir que o parceiro acertou uma broca maior. Se bem que, nesse caso, o vilão não tinha apenas um out sujo, como o Fabinho Dez-Por-Cento afirma, mas não é nada elegante discutir com um parceiro quebrado, então prefiro ficar quieto e apenas suspirar em solidariedade a ele.
Pergunto ao Fabinho Dez-Por-Cento se ele vai colocar o nome na lousa da sinuca, e ele responde que não, porque já está para ir embora. “Vou engatar num Omaha capado ali na Peixoto Gomide”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz. “Um parceiro me disse que só tem estrela na mesa, então vou dar um pulo lá e fazer a turma rebolar sem bambolê. A não ser”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz, “que outro out sujo me quebre de novo no river. Mas isso não vai acontecer hoje, acredito.”
Fico até as quatro jogando sinuca no Esquilo’s, e posso dizer que foi uma ótima noite para mim, porque castiguei a parceirada mais que um tanto. Quando estou para ir embora, quem liga no meu celular senão o Pedrinho Mídia, o jornalista, que recebeu esse apelido porque espalha as histórias mais rápido do que um carro de fuga.
Acho um tanto estranho o Pedrinho Mídia me ligar a essa hora, mas logo entendo o motivo: parece que dois malandros entraram maquinados no jogo da Peixoto Gomide e desfalcaram a carteira da parceirada. “E imagina só o único parceiro que se safou”, o Pedrinho Mídia diz para mim. “O Fabinho Dez-Por-Cento, que estava no banheiro bem no momento do golpe.”
Bem, depois desse encontro no Esquilo’s, fico alguns dias sem cruzar o Fabinho Dez-Por-Cento até que, numa tarde, estou caminhando pela Bela Cintra e o vejo tomando café numa padaria. Encosto na mesa, dou um largo olá e digo: “Veja só, até que enfim a estatística te ajudou. Contaram para mim que, naquele dia na Peixoto Gomide, dois malandros roubaram a parceirada inteira menos você, que estava no banheiro”, eu digo. “Nunca foi tão lucrativo estar dentro dos dez por centro, hein?”
Ao ouvir meu comentário, o Fabinho Dez-Por-Cento fica tão vermelho quanto um semáforo fechado, ou até mais. E ele responde assim:
“E você acha que meu azar dá descanso para mim?”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz. “Imagine você que, naquela noite, eu estava no maior chorrilho da minha vida. A parceirada, como o meu amigo tinha falado, era uma verdadeira moleza. Com três horas de jogo, eu já estava mais de 12k para frente. Aí dobrei esse tomate todo acertando uma quadra de oitos em cima de um full de ases, e decidi ir ao banheiro lavar o rosto, porque a minha mão estava tremendo mais do que um tanto”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz. “Era um tomate sério, afinal.”
“Estou ali lavando o rosto quando ouço os gritos”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz, “e como não sou filho de homem inocente, logo percebo que alguma coisa está errada. O que fiz então senão apagar a luz do banheiro e ficar quietinho no meu canto até o calor passar. Assim que o golpe se acalmou”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz, “voltei para a mesa e encontrei a parceirada mais em choque do que uma cerca elétrica.”
“Bom, é claro que o jogo terminou ali”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz. “Com aquele clima de funeral, não dava para continuar. Mas, na hora de acertar a conta, quem tinha dinheiro para pagar o Fabinho aqui? Ninguém, é claro, a não ser aqueles dois malandros maquinados que já deviam estar voando na Marginal em direção à toca. Resultado? Fiquei com um vale de 20k e sabe-se lá Deus quando alguém vai acertar essa conta. Se você acha, então, que o meu azar me deu uma brecha”, o Fabinho Dez-Por-Cento diz, “saiba que, na verdade, ele me aplicou seu golpe mais cruel em todos esses meus anos de carteado.”
Após algumas sessões de regressão, este jornalista descobriu que viveu na Nova York dos anos 20 em sua vida anterior. Sua única preocupação era saber a linha de frente da próxima corrida de cavalos e o endereço de um salão de bilhar para passar as noites frias. Ele também é editor-chefe do site www.elhombre.com.br