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Poker na TV - Ascensão e queda do poker televisionado?


Karl Hutson

São 2h da manhã e eu estou sentando no sofá, com o laptop no colo e uma xícara de chá balançando precariamente no encosto para o braço. Estou com três mesas abertas no momento. Perdi alguns blinds no cash, mas fiquei em terceiro lugar em quatro sit-and-go´s seguidos, então não irá demorar até que eu ganhe o suficiente para que a noite pague a eletricidade que consumi.
A TV está ligada ao fundo. Está passando um famosíssimo programa com algumas celebridades norte-americanas que não reconheço, cada uma dizendo alguma frase antes de dar fold... fold... fold... ei, Clonie Gowen tingiu o cabelo?

Eu me dou mal de novo, o suficiente para perder o heads-up do último sit-and-go. Vou para a cama. Não, espere. Tem mais poker na televisão! Os apresentadores estão usando smokings nesse programa, e estão comentando poker online. Esse deve ser bom — afinal, é poker online.

Ah. Vou para a cama.

Eu me lembro de 2001. O contraste é enorme. Para começar, não há chá no descanso de braço do sofá; na verdade, não há sofá. Estou sentado em uma almofada no chão, de modo que não posso cair mais. Meus jeans estão bastante desgastados, mas está passando o Late Night Poker, então nada mais importa. Essas pessoas são tao legais. Algumas se vestem como se estivessem em uma reunião de negócios; outras como se atuassem em um circo. Eu não consigo tirar meus olhos da gravata de Liam Flood. Essas pessoas genuinamente inteligentes e interessantes estão jogando poker. Vicky Coren acabou de aumentar e eu não sei o que ela tem. Imagine isso — eu não sei o que ela tem! Isso é exatamente como jogar poker. Espere, uma mulher jogando poker?

Os caras de smokings estão gritando novamente. “Pok3rprawn” acabou de apostar seus quatro últimos big blinds com ases e três pessoas pagaram. Eu definitivamente vou para a cama.

Os Pioneiros
O poker televisionado certamente passou por uma massiva transformação em sua relativamente curta existência. Embora meu primeiro contato, assim como muitos da geração do boom do poker, tenha sido o Late Night Poker do Channel 4, sua história começa com os documentários de uma hora de duração sobre o World Series of Poker, nos idos de 1970. Naquela época, ninguém queria gastar dinheiro em poker televisionado, e muito menos assistir. Assistindo a downloads dos programas antigos, é difícil acreditar que uma indústria multibilionária e um fenômeno de entretenimento mundial tenham saído disso — transformando os jogadores em personalidades esportivas e seus fãs em audiência.

Não havia gráficos na tela, câmeras que mostrassem as mãos de cada jogador, comentários brilhantes, close-ups, monitores cardíacos, câmera KFC Snacker ou Registro do Momento de All-In. Tratava-se de uma visão muito crua de uma subcultura pouco conhecida — um pequeno olhar em um mundo de personagens excêntricos, apostadores de estrada, cowboys, e os veteranos que haviam se tornado famosos. O foco era no espetáculo, pois a idéia de que alguém se sentasse para jogar cartas por $10.000 era entretenimento suficiente. Como eles chegavam à vitória era quase irrelevante.

Esse olhar documental sobre o poker continuou durante os anos 80 e 90, sem nenhuma consideração real sobre como as mãos eram jogadas, nenhuma história contada e nenhuma tensão construída. Inicialmente transmitidos pela CBS e depois pela ESPN, ângulos extras de câmeras foram adicionados aos programas sobre o WSOP, mas os comentaristas ainda especulavam sobre o que os jogadores tinham. Os telespectadores eram forçados a montar a ação, pois não havia gráficos na tela e muito menos o conhecimento das mãos de cada jogador. Isso levava a momentos realmente surreais, como o retorno de Stu Ungar ao evento principal do World Series of Poker em 1997. Como se não fosse estranho o suficiente a mesa final ter sido jogada ao ar livre no calor escaldante do deserto, os comentaristas constantemente sofriam, assim como a maioria dos jogadores, para descobrir a mão de Ungar. Mão após mão, Gabe Kaplan narrava a ação em vão. Realmente não era uma boa cobertura. Músicas-tema cafonas e disputas bizarras entre celebridades eram o ápice do dia. Até mesmo o patrocínio se limitava a algumas poucas propagandas impressas em volta da mesa final — a maior parte voltada para jogadores na platéia.

Os Revolucionários
Até 1999, pouco havia mudado no poker televisionado nos EUA. Programas de uma hora de duração mal produzidos ainda eram a única conexão entre o poker e televisão. Felizmente, neste lado do oceano, uma revolução estava prestes a acontecer em um pequeno estúdio de televisão em Cardiff, País de Gales. O poker seria submetido a um novo formato, e graças a um homem, Rob Gardner, o telespectador passaria estar no coração da ação. Nascia o Late Night Poker.

Câmeras embaixo da mesa contavam a história toda para telespectadores (na maioria, bêbados) ao redor do Reino Unido e da Irlanda. A mão de cada jogador era mostrada no momento certo, para a alegria dos comentaristas experientes. Éramos obrigados a tentar adivinhar juntamente com o jogador — procurando por tells, estudando padrões de apostas, comendo churrasco grego. O formato era simples, porém perfeito, pois tinha toda a excitação do poker televisionado atual, mas sem esses fogos de artifício que existem hoje. Era possível encontrar todas as personalidades, mas sem superestrelas. Era sutil, boa televisão tanto para fãs do poker quanto para observadores casuais, introduzindo uma geração inteira ao jogo e disseminando um novo gênero de programação esportiva. O poker passou a ser um esporte de espectadores.

O programa foi transmitido originalmente durante seis temporadas, entre 1999 e 2002, e tornou estrelas os seus participantes muito antes do boom do poker online e enquanto o WSOP ainda era apresentado como um documentário de uma hora de duração. Jesse May, comentarista original do Late Night Poker, atribui o sucesso do programa a algo além da inovação.

“O que o LNP tinha de melhor e que ainda faz dele um programa interessante, era sua execução”, ele explicou. “Os telespectadores assistiam a algo que poderia facilmente ser entediante e viam o drama. Late Night Poker tinha a apresentação e execução hábeis a contar uma história convincente, com personagens interessantes, de uma maneira que raramente foi repetida oito anos após seu término”.

Nos anos que seguiram o cancelamento inicial do Late Night Poker, o palco estava montado para que o poker se tornasse um fenômeno, e o programa se mostrou realmente à frente de seu tempo. Todos nós sabemos a história daí em diante — O World Poker Tour, Chris Moneymaker, a explosão online, o European Poker Tour, o Professional Poker Tour, o Poker Dome, Celebrity Poker Showdown, High Stakes Poker, Poker After Dark, poker online ao vivo e poker online ao vivo na TV.

A lista segue adiante, com telespectadores se afogando em um mar de siglas, mãos aleatórias, jogadores medíocres e logomarcas de patrocinadores. Embora hoje em dia haja mais poker televisionado do que qualquer um poderia prever, algo maior está faltando. Onde está o drama? Onde está a batalha de mentes? Onde está Mike Magee?

Os Reacionários
Desde que fui atingido na cabeça por uma câmera da ESPN enquanto rondava em uma sala de poker no Cassino Rio dois anos atrás, eu admito guardar certo ressentimento em relação à abordagem dos americanos desse lindo jogo. Câmeras embaixo da mesa eventualmente atravessaram as águas a tempo da exibição do primeiro episódio do World Poker Tour em 2003. Naquele mesmo ano, a ESPN correu com a idéia de transformar o World Series of Poker em um espetáculo musical e dançante. Eles herdaram o maior jogo do planeta e o comercializaram sem escrúpulos. A cobertura do World Series of Poker se tornou a representação daquilo que me faz detestar assistir ao jogo na televisão.

Se você viu um jogador qualificado online com o punho cerrado no ar, já viu todos. O comentário é engraçado, isso eu admito. As histórias de fundo sobre os participantes derrotados e terminalmente doentes são emocionantes, mas guardam pouca relação com o jogo que eu lembro assistir às 2h da manhã, depois de uma farra nos tempos de faculdade. Não há tensão nem drama, e, apesar dos milhões de dólares em jogo, nenhum senso real de importância. As mãos são reveladas em seqüência, uma após a outra, uma mesa depois da outra contendo jogadores qualificados online sem rosto. Eles jogam sem esperança enquanto os comentaristas se esforçam para se lembrar de anedotas e animar a ação.

Infelizmente, a maioria dos programas parece ter seguido esse padrão — uma visão ESPN-isada, exagerada e completamente sem relação com um jogo televisionado que outrora foi tão intelectualmente envolvente. Ainda mais infeliz é o fato de haver uma nova geração inteira de jogadores que acham que cerrar o punho em comemoração é uma parte do jogo tão importante quanto ter a melhor mão, tirando muito da classe de uma busca que antes se concentrava em espadas. Estou começando a acreditar que existem realmente pessoas que gostam de ouvir Caprice dizendo como ela se sente quando está de all-in, ou que querem assistir a comentaristas de smoking gritando ao discutir sobre poker online. Eu devo ter perdido uma aula ou o poker televisionado perdeu seu rumo.

Os Rebeldes
Por sorte, para os puristas do poker, alguns programas estão indo na direção certa. O supramencionado High Stakes Poker trouxe o jogo de volta ao básico — mostrando grandes jogadores, em recintos privados, jogando por enormes quantias de dinheiro. A ação às vezes se resume a um programa de comentários, com discussões eternas sobre as “superestrelas” escolhidas, mas as qualidades contrastantes dos participantes, os comentários informados, e o tamanho adequado do jogo tornam-no muito mais convincente do que o “Bingo pelo Bracelete do WSOP”.

O European Poker Tour certamente fez sua parte, esforçando-se bastante para fazer do poker um esporte televisionado, apesar da produção levemente esterilizada. O EPT colocou a ênfase de volta no jogo sendo jogado, em vez de em sub-enredos estúpidos. Uma grande gama de mãos entra na edição final, não apenas os bad beats e drawouts das produções menores.

O futuro de nosso jogo na TV é incerto no meio desse boom que prossegue inabalado. A audiência está lá, mas dá sinais de estar ficando entediada. Jogadores de poker tendem a ser muito inteligentes, e alguns dos programas que vêm sendo produzidos insultam a inteligência deles. Comparações já vêm sendo feitas ao decrescente apelo da sinuca, cujas massivas audiências de outrora fizeram dela o fenômeno do esporte televisionado — no Reino Unido e na Irlanda, pelo menos — dos anos 80.

Não obstante, ainda há tempo de deter o avanço da programação de baixa qualidade, rígida e distorcida. O bem-recebido e atrasadíssimo retorno do Late Night Poker deve ajudar a mostrar como o formato perdeu o rumo. Jesse May sustenta que aquilo que fez do programa original tão bom ainda é muito relevante hoje.

“Embora seja importante lembrar que a sofisticação média do telespectador aumentou consideravelmente, e que ele demanda uma diversidade maior do que antes”, afirmou ele, “os elementos do bom poker televisionado permanecem os mesmos. Os participantes devem estar sob pressão, devem se importar se ganham ou perdem. Muitas vezes, hoje em dia, os participantes parecem estar jogando apenas mais um torneio, e na verdade não se preocupam se serão eliminados logo. Deve haver uma história sendo contada, e o formato deve permitir que um bom poker seja jogado. O tempo em que era possível se colocar qualquer jogo ou torneio na TV e ter audiência se foi. Os telespectadores precisam entender o enredo e o que está em jogo. Se esses elementos forem bem colocados, há muita vida ainda no velho jogo”.

Felizmente, produtores de poker experientes também estão aproveitando a oportunidade para trazer o jogo televisionado de volta a suas virtudes centrais, com alguns programas promissores em andamento. Ian Langstaff é dono da empresa de produção Winmedia, cujos trabalhos anteriores incluem o Irish Open e o European Ladies Championship. Ian sabe em que consiste uma boa programação de poker, e está buscando avançar no gênero mais do que se juntar à massa.

“O poker precisa ser televisionado mais como um evento do que como um programa de estúdio”, ele se entusiasmou. “Assim que o estilo de estúdio dos programas se tornar obsoleto, o poker se juntará a esportes como a sinuca e o golfe, com coberturas abrangendo toda a duração do torneio, e não apenas uma mesa final sem construção prévia. Já tentamos o formato ao vivo, mas pode haver longos períodos de inatividade, especialmente no deep-stack poker. Enquanto produzíamos o Irish Open ano passado, gravamos durante o dia do torneio e transmitimos na mesma noite por três noites consecutivas. Isso nos permitiu excluir as ‘partes chatas’ e mostrar ao vivo in loco os melhores momentos do dia, entrevistas e montagens musicais. Os jogadores viam a si mesmos jogando quando estavam no bar na mesma noite. Os índices de audiência das transmissões quadruplicaram e os jogadores adoravam a produção instantânea. Esse tipo de produção não é novo; ele existe em todos os esportes. Nós simplesmente tratamos o poker como um esporte e mostramos as jogadas e melhores momentos na mesma noite. Esse é o futuro do jogo na televisão”.

Cobertura de qualidade de eventos únicos como o Irish Open é um passo na direção certa, mais interessante do que a atual do World Series of Poker. Mas para cada uma delas existem inúmeros eventos feitos para a TV à moda do WSOP. Eles oferecem coberturas estigmatizadas e superficiais daquele que é um jogo maravilhosamente complexo. Legiões de fãs do poker, conhecedores e ávidos, querem muito mais. Patrocínio e propagandas são parte da televisão moderna, e é inocente imaginar que um programa de poker simples e de madrugada, com pouco glamour e muito conteúdo, apareça em nossas telas novamente. Eu, pelo menos, vou considerar o Late Night Poker original não como simplesmente o ponto de partida, mas como o ponto alto, um marco que deve servir de parâmetro aos outros.




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