Além do trabalho que a World Poker Federation (WPF) vem realizando nos últimos anos, a entrada do poker para a International Mind Sports Association (IMSA) passa também pela mãos de uma figura pouco conhecida no meio do poker, mas já com uma bagagem enorme quando falamos de esportes da mente, mais precisamente, dentro do xadrez.
Darcy Lima é um Grande Mestre brasi- leiro de 62 anos. Seu currículo, tanto dentro quanto fora dos tabuleiros, o credencia como um dos grandes nomes da área no Brasil e no mundo. Como jogador, Darcy é multicampeão brasileiro e sul-americano, além de ter participado três vezes do Campeonato Mundial de Xadrez, da Copa do Mundo de Xadrez e quatorze vezes das Olimpíadas de Xadrez.
Como dirigente, presidiu a Confederação Brasileira de Xadrez (CBX) de 1999 a 2004 e de 2013 a 2020. Neste período, ele foi presidente da Comissão de Projetos Sociais da Federação Internacional de Xadrez (FIDE) e criou o projeto “Xadrez que Liberta”, para ressocialização de presos através do jogo. Hoje, ele é presidente da ABRESPI (Associação Brasileira de Esportes Intelectuais), entidade que representa a IMSA no Brasil, da qual ele é vice-presidente.
Darcy deu uma entrevista exclusiva para a Card Player Brasil, em que, dentre vários assuntos, falou sobre o crescimento da IMSA e o entusiasmo de ter o poker e a WPF definitivamente junto aos “nossos esportes”.
Marcelo Souza: Darcy, qual é a importância da IMSA para os esportes mentais?
Darcy lima: Assim como qualquer esporte, os esportes da mente necessitam cada vez mais de divulgação, organização e, principalmente, da oficialização e legitimação de seus campeonatos. Esses esportes têm relativamente pouco tempo de legitimação no cenário esportivo mundial. No passado, esportes como xadrez e poker não eram vistos necessariamente como esportes. Vemos também que faz pouco tempo que o Comitê Olímpico passou a se interessar pelos esportes eletrônicos, e a IMSA foi pioneira nesse movimento. É fundamental a organização proporcionada pela IMSA e a crescente adição de esportes relacionados à mente. Isso foi essencial para que esses esportes conquistassem um espaço importante dentro da sociedade.
MS: No geral, os brasileiros ainda não têm noção do tamanho da IMSA. E hoje nós temos um brasileiro na vice-presidência. Você poderia falar um pouco sobre isso?
DL: A IMSA ainda não tem um nome tão forte como o COI ou a FIFA, mas é uma organização que representa esportes muito importantes. O Go, por exemplo, tem milhões de adeptos. Na China, há cerca de 300 milhões de jogadores federados de Go, o que é um número impressionante. Para quem não conhece, o xadrez é a quarta maior federação em número de países. O poker já tem mais de 40 federações ao redor do mundo.
Eu, como Grande Mestre de xadrez, tenho uma presença ativa na Federação Internacional de Xadrez (FIDE), e ao longo do tempo, consegui alcançar um cargo
onde posso defender não só os interesses do xadrez, mas de todos os esportes da mente. Tenho bom entendimento de todos eles. Então, é um trabalho que comecei há algum tempo. Desde 2011, sou presidente da ABRESPI e, há cerca de um ano e meio, sou vice-presidente da IMSA, o que me permite continuar trabalhando por esses esportes.
MS: Nos últimos anos, o crescimento dos esportes da mente no Brasil foi algo como nunca tínhamos visto. Praticantes e produtores de conteúdo surgem em todas as áreas. No xadrez, o “rafachess” construiu uma base sólida e começou também uma parceria com o GGPoker. No poker, a quantidade de streamers vai aumentando todos os dias, assim como o número de eventos ao redor do país. O que você pode dizer sobre isso?
DL: Vários esportes da mente têm uma afinidade muito grande com a informática e o online. Durante a pandemia, por exemplo, o xadrez e o poker tiveram um grande crescimento, pois você pode jogar de qualquer lugar. Nossos esportes se adaptaram muito bem às novas mídias, e isso contribuiu para o desenvolvimento dos mesmos.
Além disso, estamos conseguindo mostrar para a sociedade que esses esportes têm um papel importante no desenvolvimento cognitivo. Em várias escolas, já estão ensinando xadrez. Daqui a pouco, acredito que também estarão ensinando os princípios do poker. Nossos esportes possuem várias qualidades que o mundo moderno necessita, e por isso eles têm crescido. Cada um de nós faz a sua parte. Eu ajudo as pessoas que estão em posições de liderança a desenvolver políticas com esses objetivos, pois nossos esportes ajudam, principalmente, por sua capacidade de se conectar com as necessidades do mundo moderno.
Nossos esportes possuem várias qualidades que o mundo moderno necessita, e por isso eles têm crescido.
MS: Achei interessante que você sempre fala ‘nossos esportes’, mesmo sendo alguém oriundo do xadrez. E o poker, qual é a sua relação com ele atualmente?
DL: Eu jogo poker, mas não sou um jogador tão assíduo, até porque ainda jogo xadrez competitivamente, evito praticar muito outros esportes da mente. Quando assumi a presidência da ABRESPI, fizemos alguns trabalhos de análise, como a matriz SWOT, para identificar os pontos fortes e fracos de cada esporte. Tenho muita identificação com os benefícios que o poker traz e admiro o que ele conseguiu produzir ao longo dos anos no Brasil, enfrentando batalhas ainda mais difíceis que o xadrez e outros esportes, e saindo vitorioso.
O poker lida com o raciocínio e a tomada de decisões, o que em muitos aspectos se assemelha ao xadrez. O lado psicológico é um exemplo. Poker e xadrez possuem tática e estratégia. Partes semelhantes do jogo, a abertura no xadrez, o pré-flop no poker.
Não é o que vai fazer você ganhar o jogo, mas é o que vai evitar que você chegue em situações difíceis no final do jogo, no caso do poker, no final da mão (o river).
MS: Você mencionou as semelhanças entre poker e xadrez, e é interessante observar como muitos jogadores de poker vêm de outros jogos de raciocínio, inclusive do próprio xadrez. Temos exemplos de jogadores de poker que vieram do xadrez, como o Rafael Moraes, cujo nick faz alusão a isso (GM_Valter), o Fernando Viana (mestre FIDE) e o Vini Marques (mestre internacional). Recentemente, o Magnus Carlsen, campeão mundial de xadrez, também começou a jogar poker e se saiu bem, recebendo até elogios de especialistas. Uma coisa interessante é que esses caras desenvolveram intelectos acima da média e conseguiram sucesso em outras áreas além do esporte. Como você acha que esses esportes da mente podem beneficiar outras pessoas no Brasil, especialmente agora que estamos em um momento de crescimento?
DL: Esses esportes ajudam em várias áreas, especialmente a tomada de decisão em situações com diferentes variáveis e em um curto espaço de tempo. No xadrez, por exemplo, lidamos com muitas decisões relativas, onde você precisa tomar uma decisão sem ter todas as informações específicas.Isso é fundamental e algo que aplicamos em diversas áreas. Temos projetos sociais que envolvem o xadrez em prisões e com pessoas autistas, e vemos uma melhora significativa de desenvolvimento, especialmente na capacidade de tomar decisões.
Um exemplo interessante é o projeto que iniciamos em prisões, que foi premiado como o Melhor Projeto Social Esportivo do Mundo, em 2012. O desenvolvimento cognitivo ajuda essas pessoas a não voltarem para o crime e terem mais oportunidades quando saírem da prisão.
Esportes como poker e xadrez treinam o cérebro. Nosso cérebro é extremamente capaz de fazer analogias, e a vida real é cheia de analogias em relação aos esportes.
MS: Agora, falando um pouco da WPF. Nós temos a FIDE, mundialmente conhecida e desenvolvida no xadrez. O que a WPF precisa fazer para alcançar um patamar similar ao da FIDE?
DL: Com certeza. Acredito que a WPF surgiu em um momento muito oportuno. A FIDE levou anos para se consolidar como uma federação internacional que agrega tantas nações. Como mencionei, é a quarta maior federação em número de países no mundo esportivo, e isso levou tempo. No entanto, acredito que a WPF conseguirá alcançar isso em muito menos tempo.
Primeiro, porque as pessoas envolvidas já têm experiência e sucesso no poker. Um grupo extremamente competente. E agora, com a entrada oficial para a IMSA, não há mais amarras para o potencial do poker. Eles poderão dar o próximo salto.
A WPF tem a capacidade de conectar todos os pontos do poker ao redor do mundo.
Hoje, o poker já é uma realidade global, falta apenas esse reconhecimento oficial, como a FIFA para o futebol ou a FIDE para o xadrez. O poker definitivamente irá muito além do que já é.
Esportes como poker e xadrez treinam o cérebro.
MS: O poker já é objeto de estudo em grandes universidades, como Harvard e UNICAMP, utilizado em treinamentos de empresas. Você acha que com a ajuda da WPF pode chegar ainda a um público maior, como o xadrez nas escolas, por exemplo?
DL: Sim, acredito que no futuro, a introdução desses jogos nas escolas será inevitável. O bridge, por exemplo, já é ensinado na França e também é um jogo de cartas. Então por que não incluir outros jogos de cartas que promovam habilidades como matemática e pensamento analítico?
No caso da WPF, será fundamental essa parceria com a IMSA para avançarmos em países mais restritivos com jogos. Países muçulmanos, por exemplo, estão cada vez mais interessados nos esportes da mente. Com o apoio da IMSA, acredito que poderemos quebrar barreiras e alcançar patamares antes inimagináveis para o poker e os outros jogos.
MS: Você citou que o poker e o xadrez possuem muitas semelhanças, e é engraçado que muitos profissionais transitam nos dois mundos. Você acha possível competições ou eventos chancelados que envolvam poker e xadrez juntos?
DL: Na verdade, já existe um projeto para isso, para criar um circuito que seja acoplado de forma adequada. O grande desafio ainda é encontrar o modelo exato para que tanto o jogador de poker quanto o de xadrez não sejam prejudicados. Hoje, eu diria que cerca de 80% dos jogadores de xadrez também jogam poker, especialmente em torneios.
Hoje, o poker já é uma realidade global, falta apenas esse reconhecimento oficial [...]
Muitos jogadores de xadrez gostam de jogar poker, seja por diversão ou até de forma competitiva. Quando participo de torneios de poker, encontro vários jogadores de xadrez com ranking internacional que também estão competindo no poker. Pode ter certeza que essa entrada da WPF para IMSA vai ajudar neste aspecto, principalmente em trazer novos tipos de eventos para o poker.
MS: O fruto da sua luta, da WPF, da IMSA, já é refletido no cotidiano. Como você vê o cenário geral dos esportes da mente?
DL: Fico muito feliz com essa união dos esportes da mente, que, apesar de serem antigos, estão ganhando cada vez mais espaço na sociedade. Aos poucos, vemos essa integração se fortalecendo. Quando estou no Brasil, em diferentes atividades, vejo torneios acontecendo em vários lugares. Em Goiânia, por exemplo, os torneios de xadrez e poker ganham cada vez mais força. Em Vitória, tivemos eventos de poker, xadrez e damas em shoppings. Isso me deixa muito satisfeito, pois essa união, embora jovem, está avançando bastante. Para mim, é uma grande alegria. Essa união está dando certo e evoluindo, e isso me deixa muito feliz.
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