EDIÇÃO 8 » MISCELÂNEA

O Caso do Bracelete de Ouro - Parte III


George Queiroz

A vida é cheia de contradições. Por mais que reclamemos da rotina, sempre que algo nos arrasta dela para lançar-nos dentro de um vendaval caótico, tudo o que desejamos é retornar o quanto antes para a velha vida cinzenta de sempre. Juro que senti muita falta do meu velho escritório escuro e mal mobiliado na Racine Street, 1736 no momento em que me deparei com uma figura disforme, usando máscara e capa negras e apontando uma arma em minha direção. Atrás de mim, a mulher que me contratou para desvendar uma série de atentados ao seu patrimônio empalidecia nos braços do mordomo que, não obstante minhas suspeitas a seu respeito, parecia tão surpreso quanto eu.

Levei um minuto inteiro para esboçar uma reação, devido ao atordoamento. Antes, precisei recapitular todos os acontecimentos para recobrar a razão. Susan Creamcheese apareceu em meu escritório para contratar meus serviços. Desejava que eu investigasse um sujeito que atentava contra seu patrimônio: cavalos, cães premiados, carros, iate, todos haviam sido destruídos numa série ilógica de atentados, cujas únicas pistas eram cartas de baralho do naipe de ouros deixadas nos locais dos crimes. Mais tarde, Susan revelou-me que essas cartas representavam a mão vencedora de um torneio de poker vencido por seu pai, Arthur. A quinta carta, que completou o flush, surgiu nesta madrugada, deixada na cama de Mr. Creamcheese, que, por sua vez, desaparecera misteriosamente. Susan contou-me ainda a história pregressa de seu pai, que supostamente teria assassinado um rival, em legítima defesa, para reaver seu bracelete de ouro conquistado no torneio. O rival era Jim Moriarty, do qual não se ouviu mais falar.

- Dealer, há mais um jogador à meeeeesa! – disse com uma horripilante voz metálica, cheia de chiados, nosso ameaçador visitante. Deu uns passos em nossa direção e acrescentou: - Mas que surpresa agradável!
- Quem é você? – berrou nervosa a bela Susan.

Eu sabia que precisava agir o quanto antes. Aparentemente, o mascarado não havia contado com minha presença e eu poderia usar isso a meu favor. Mas ele estava armado e eu não, o que era uma grande desvantagem. Foi quando percebi a bandeja que aquele mordomo de araque havia deixado sobre a escrivaninha. Sem pestanejar, lancei-me sobre a escrivaninha, girei com o corpo sobre ela e, ao cair do outro lado, atirei a bandeja no melhor estilo dos meus bons tempos de atleta de lançamento de disco. Eu mirava o braço do mascarado que segurava a arma. Foi quando eu lembrei o porquê de eu ter desistido do atletismo. A bandeja não atingiu a arma do mascarado, passando rente a sua orelha direita.
- Mas o que...? Seu idioooota!

Susan olhou para mim com uma cara de desespero, como se preferisse que eu não fizesse nada. Não me restava, pois, muita alternativa: dei de ombros e esperei do mascarado que se apresentasse, como um autêntico e legítimo vilão.
- Susannnn, quem é este estúúúúpido? – perguntou o mascarado enquanto esfregava a orelha direita.

Susan permanecia assustada e tentou balbuciar uma resposta. Antes disso, porém, eu decidi tomar a dianteira e manter o mascarado falando, para que ganhássemos tempo.
- Eu sou...
- O nome dele é Hercule Smith, senhor. É um detetive contratado por Miss Susan. Apreciaríamos muito se soubéssemos também por qual alcunha o senhor responde – interrompeu-me o maldito mordomo.
- Vocêssss podem me chamar de Soooooombra.  E Susannnn, tente se acalmaaaar. Não vou lhe fazer maaaal.
- O que você fez com meu pai, seu animal?
- Seu paaaai está bem. Enquanto minha integridaaaade física for mantida, ele não sofrerá naaaada.
- O que você quer de nós, digo, o que quer de Susan? – pensei que talvez fosse uma boa hora para eu me fazer ouvir. No manual dos detetives particulares não há muitas referências ao que fazer quando interpelado por um mascarado usando capa e que lhe aponta uma arma, e eu sou péssimo em improvisações.

- Sigaaaam-me! Sombra disse isso e sumiu na escuridão da biblioteca. O bom senso me dizia para sair correndo dali e procurar reforços. Não obstante o fato de não mais lhe ter apontada uma arma causou em Susan um efeito encorajador. O róseo já lhe voltava às bochechas e ela se livrou dos braços do mordomo. Puxou mais para baixo a saia e recompôs sua postura.
- Vamos atrás dele! O que estão esperando?

Como assim, “estão”?, pensei. Não era possível que ela quisesse que aquele arremedo de garçom nos seguisse. De que ele seria útil? A menos que usasse um avental à prova de balas... mas eu já havia experimentado o tom autoritário de Susan e sabia que de nada adiantaria reclamar naquela hora. Ela mesma já se adiantava e ia na direção de onde saiu o Sombra. Por trás de uma das estantes havia uma porta secreta que aparentemente nos levava ao subsolo.
- Céus! Uma passagem secreta!
- Qual a surpresa, detetivezinho? – disse o mordomo sem olhar para mim. - Toda mansão inglesa que se preze tem uma passagem secreta na biblioteca. Isto é tão óbvio quanto uma azeitona em um martini.

Eu lamentava profundamente o fato de o mordomo não ser o culpado. Enquanto descíamos a escada em espiral sem enxergar um palmo a frente do nariz, imaginei dezenas de formas silenciosas de esganar aquele sujeito ali mesmo. Susan nem perceberia nada. Porém, ia surgindo adiante uma luz, sinal que chegaríamos logo ao nosso destino.

A passagem secreta dava em uma sala cheia de armaduras, estantes com livros mais empoeirados que os da biblioteca do piso acima, baús e quadros. Parecia ser onde os Creamcheeses escondiam suas relíquias. No centro da sala, uma mesa cercada por candelabros dourados ostentava pilhas de fichas de poker. Havia também cartas de baralho, o que certamente indicava um convite para uma partida.

- Ok, Sombra, qual o seu jogo? – Perguntou Susan, com o seu nariz empinado.
- Eu joooogo hold’em, mas sei que não era iiiisso que você quis perguntaaaar, he he he... Vim lhes propor um desafio. Joguem poker comigo, e vencendo ou nãããão, eu lhes digo o paradeiro de Aaaarthur Creamcheeese.
- Proposta sedutora, Mr. Sombra. Mas o que você ganha com isso?
- Caaaaso eu vença, pretendo ficar com iiiisto como prêmio! – disse, e puxou de baixo de sua capa o bracelete de ouro de Arthur Creamcheese.

Susan olhava incrédula, voltando seu olhar, para mim, de mim para o mordomo, deste para o Sombra, como se esperasse de um de nós uma explicação: - O bracelete de meu pai! Mas, como... como conseguiu isto? Estava na Suíça, em um cofre!
- Coooomo pode ver, sou um homem de muuuuitos recursos.
- Seu canalha, eu juro que se encostou um dedo no meu pai, eu, eu vou lhe esfolar vivo!
- Ora, Susannnn, você é tão corajosa quanto o velho Aaaarthur. Eu pretendia jogar apenas contra você, porque sei que seu pai a treinou muuuuito bem todos esses anos. Mas Mr. Smith e o Jarbas ali podem participar tambéééém.
- Meu nome é Manfred, mister. Por favor! – reclamou o mordomo.
- Hahahahaha!

Não pude conter o riso, mas como todos me voltaram olhares de reprovação, dei uma piscadela de desculpas ao mordomo e sentei-me à mesa. Dentre as minhas muitas inabilidades estava o poker, mas intimamente eu acreditava que se vencesse aquela partida, podia ganhar o coração de Susan. Que se dane o bordão “azar no jogo, sorte no amor”.

A partida começou nervosa. Eu não podia me concentrar com aqueles zumbidos de respiração que saíam da máscara do Sombra e tinha a impressão que aqueles olhos negros podiam enxergar através das minhas cartas. Além disso, os estalos de língua e o chiado de dentes chupados que o mordomo fazia me dava nos nervos. Susan, porém, jogava serenamente, como se tivesse plena confiança de que venceria.

O primeiro a sair foi Manfred. Recebi JJ e o flop veio A88. No turn virou um 2 e eu era o primeiro a falar. Aumentei. Sombra pagou e Susan desistiu. Mas Manfred me voltou all-in, que paguei. O Sombra largou a mão. O mordomo me sorriu e mostrou A2, e riu ainda mais quando lhe mostrei meu par de valetes. Porém, no river virou um lindo J, o que me deu um full house e o pote.
- Chupa, seu pato! Há há há! – gritei, apontando para Manfred, e já ia começar minha dancinha da vitória, não fosse o olhar reprovador de Miss Creamcheese.
- Deeeevo lembrar-lhe, Mr. Smith, que éééé contra mim que está jogaaaando, e não contra o Aaaalfred...
- Manfred!!!

Aprendi logo em seguida que não se blefa contra um sujeito de máscara e capa negras, de voz metálica. Fui o segundo eliminado e sentei-me ao lado do mordomo para assistir ao heads-up decisivo.

O embate entre os dois foi longo e tenso. Ninguém estava disposto a perder, mas Susan parecia estar em ligeira desvantagem. Lia-se em seus olhos um leve desespero, compreensível até; enfrentar o Sombra era como jogar contra uma estátua. O homem era de uma frieza medonha e parecia ler o pensamento de sua adversária. Aos poucos, ele foi dilapidando o stack dela.

Susan começava a ver seu jogo ir por água abaixo, mas acredito que ela não permitiria que o adversário levasse embora o bracelete de seu pai sem muita luta. Aparentemente, ela ainda tinha esperanças de vencer e tudo o que parecia precisar era de um sinal. E ele veio. Sua mão veio 82 e o flop trouxe 105Q... imediatamente, ela reconheceu nas cartas que seu pai estava consigo... Deus, pude ler isso no rosto dela. Quando bateu um J no turn, seus olhos faiscaram e ela foi de all-in. Ela tinha certeza de que no river viraria um K e ela receberia aquele bracelete assim como seu pai o fez há tantos anos atrás, e exatamente com a mesma mão. Esse pensamento possivelmente passou com o mesmo conteúdo pela cabeça do Sombra, mas aquela máscara não me permitia fazer nenhuma leitura.

Um minuto de silencio se arrastou vagarosamente. Não se ouvia mais sequer o chiado da respiração do Sombra, que permaneceu imóvel como um robô sem pilhas. Susan suava e olhava para o adversário, que ainda não tinha decidido se pagava a aposta ou desistia. Pareceu a todos isto um sinal de fraqueza. Mas repentinamente, o Sombra empurrou sua pilha de fichas, pagando o all-in. Fez menção de dizer alguma coisa, e eu cheguei mesmo a pensar que ele fosse dizer “Xeeeeque” ou coisa parecida. Disse nada; mostrou suas cartas: AA.

Susan pareceu querer dizer algo, mas engasgava. Mostrou as suas cartas e mal se continha de curiosidade. Precisava de uma carta de ouros, mas ela sabia que seria o rei, seria a carta que deu ao seu pai a vitória sobre Moriarty. Quando o Sombra virou o river, o coração de Susan retumbou por toda a sala: veio um A.

O Sombra, como se não tivesse acontecido nada de extraordinário, levantou-se e recolheu para si o bracelete, que estava sobre a mesa. Chiou fundo um chiado metálico e, como se tirasse um peso de suas costas, sentenciou:
- Finalmeeeente, o bracelete está nas mãos de quem de direeeeito.

Susan estava possessa. Jogou longe as cartas e fichas que estavam sobre a mesa e gritou: - É você, não, Moriarty! Você nunca descansaria enquanto não roubasse o bracelete de meu pai, seu maldito!!!
- Mooooriarty está morto. E eu sou uma noooova pessoa agoooora.
- Se você pensa que vai sair impune dessa, seu calhorda, está muito enganado! – Susan pulou com as mãos no pescoço do Sombra, que caiu no chão com o impacto. O mordomo ao meu lado e eu nos levantamos prontamente para ajudar. Embora estivesse armado, o Sombra não sacou seu revólver. Tentava se desvencilhar de Susan, mas era difícil conter aquela mulher furiosa.
- Susannnn, espere... eu preciso lhe dizer aaaalgo...
- Cale a boca, seu nojento! Eu sei que você já matou meu pai a estas horas e veio aqui apenas para tripudiar de sua memória. Eu vou lhe matar, Moriarty!
- Nãããão, espere... escuuuute! Susannnn, eu sou sei paaaai!...

Susan parou repentinamente de atacar, perplexa com a revelação. Olhou para o mordomo, perdida e perguntou-lhe com a voz fraquinha: - Meu pai... meu pai é Moriarty?
- O que está insinuando, cafajeste! Patrão Arthur e Miss Susan são idênticos, como se ela fosse a cópia feminina dele!

O Sombra livrou-se de Susan que ainda se mantinha em cima dele e disse, enquanto puxava a máscara: - Eu sei disso, seus estúpidos. Sou eu, Arthur Creamcheese! E parem de me olhar como se eu fosse louco, ok? Eu posso explicar tudo o que está acontecendo aqui.

Todos ficaram mudos perante a revelação. Eu estava tão perplexo quanto todos no local, mas no meu íntimo eu ouvia tranqüilamente o jazz dos discos riscados do meu vizinho da Racine Street, 1736. Deviam ser saudades do meu escritório escuro, do tempo em que meu trabalho era apenas seguir mulheres adúlteras e matar ratos para a garota da loja de penhor. Quem diria... a vida é mesmo cheia de contradições.

Conclui na próxima edição...




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