EDIÇÃO 64 » ESTRATÉGIAS E ANÁLISES

Pílula Azul ou Vermelha?

Enxergando a Matrix do Poker


André Dexx

No universo do poker, todos têm uma programação mental. Portanto, absorver a programação de cada jogador significa estar um passo a frente na criação da melhor jogada. Dessa forma, pensa-se não apenas em um oponente de maneira isolada, como se estivesse em um heads-up, mas em toda a configuração da mesa, e em como aproveitar as oportunidades que ela oferece. Aqui, “eu lhe mostro a porta, mas é você que tem de atravessá-la”, como disse Morpheus no filme Matrix.

Repare que dei ênfase à palavra “criação”, afinal, o processo inteiro se dá dentro de um campo criativo. E por mais que exista, de fato, a melhor jogada para qualquer mão, só se chega a ela entregando-se ao momento e seguindo a via da criatividade. Para que seja possível traduzir os “aplicativos” da mente dos outros jogadores é necessário interpretar dados como frequência, técnica e estado emocional.

Frequência é quantidade de vezes que um adversário executa certas jogadas. Ela serve para apresentar a extensão do range de cada jogador. No poker online, os programas de estatísticas facilitam bastante a nossa vida nesse aspecto.

A técnica pode ser entendida como o nível do adversário, a forma como ele poderá agir sob determinadas circunstâncias. Aqui, deve-se detectar o percerveid range, aquela gama de mãos que o oponente acredita que você tem em determinada jogada. Vale lembrar que é preciso delimitar a gama percebida tanto por você quanto por seu adversário. Esses dados terão por base fatores como conhecimento do vilão, seus históricos, cartas, stacks, bordo etc.

Já o estado emocional terá um peso considerável em várias decisões, a depender do temperamento do adversário e de como ele imagina que estamos nos sentindo.

Todas essas programações têm como fundamento o conhecimento adquirido, o qual a mente captura e que pode ser usado incondicionalmente. Toda informação pode ser absorvida de diversas formas, variando com a personalidade de cada indivíduo. Isso faz, por exemplo, com que seja praticamente certo que uma pessoa passiva e medrosa se torne um jogador extremamente tight, um nit. É a partir dessa “configuração” da personalidade que todas as experiências nas mesas são filtradas. É como uma água que passa por um filtro sujo e, por isso, não tem a transparência que deveria.

O processo de desenvolvimento do jogador consiste, justamente, em aumentar essa percepção, em remover pouco a pouco as impurezas do filtro, até que a água fique limpa. Quando se chega a esse estágio, tudo fica bem claro, e quase não surgem mais dúvidas, pois todas as variáveis estão sendo mensuradas desde a raiz. Por outro lado, quando somos orientados pela ignorância, nos guiamos, a priori, por um condicionamento embasado em traumas e medos. Essa é a razão de mente fazer interpretações equivocadas.
 
Dominar o poker vai muito além de operar sobre o condicionamento para se obter uma vantagem, um edge, maior. Significa alcançar a plena visão do jogo. Uma análise limitada, com respostas programadas, é como interpretar uma pintura fixando-se somente em uma pequena parte dela. Não há como compreender o pintor e sua arte desse modo. É preciso afastar-se para ter a percepção do todo, de forma que tudo ficará mais coerente. Só assim se consegue uma conexão entre autor e obra.
Um dos fenômenos mais interessante que percebi sobre a mente, e que me despertou algo bastante positivo no jogo, é que ela funciona como um disco arranhado, que fica repetindo sempre a mesma música de forma desordenada. Digo isto porque a maioria dos jogadores acredita abordar o jogo de maneira criativa, só porque pensam, tecnicamente, de forma mais complexa. Isso não significa que eles não agem a partir da mente repetitiva.

Como é possível tirar proveito disso? Bem, quem age dessa maneira fará a mesma coisa em situações semelhantes. Um bom exemplo é um jogador que sempre dá fold com top pair e kicker fraco diante de uma aposta cujo valor é maior do que o pote. Esse movimento restringe consideravelmente o range com que ele paga esse tipo de aposta. E continuará dando fold, a menos que o mesmo movimento se repetisse várias vezes, a ponto de ele cair na real e entender que o nosso range é grande para fazer essa jogada.

A melhor maneira de contra-atacar o agressor é com jogadas pouco ortodoxas, pois ele não conseguirá traduzir a frequência correta com que realizamos determinando movimento. Assim, a tendência é que ele tome a mesma decisão da jogada anterior, e com o mesmo range de fold ao ser confrontado com um check-raise-all-in, por exemplo. Se o vilão desistiu diante dessa jogada, pode-se continuar dando check-raise-all-in do mesmo jeito em situações semelhantes, até tomar call de uma mão de valor.



Quando isso acontecer, será preciso reavaliar o range de call do vilão, considerando a informação da mão passada, em que fomos para o showdown, e o poder de adaptação do adversário. Aqui, torna-se notória a importância de se questionar o poder de adaptação do adversário, informação que terá impacto fundamental nas decisões futuras. Também fica claro que se desenhou o cenário de uma guerra psicológica, sendo passível de mudanças a percepção que o vilão tem de nós. Portanto, é preciso sempre se readaptar, de acordo com a capacidade de adaptação dele.

Com o passar do tempo, sua ação, nas várias situações em que você deve dar call, raise ou fold, tornam-se mecânicas – e o profissional é adestrado pela preparação de sua mente. Ele tem uma resposta condicionada para todas as situações, para que não precise ficar atento à situação presente. Agir com consciência requer muita atenção a todos os detalhes, já que você não tem decisões predeterminadas e vai agir livre de preconceitos.

As pessoas têm medo de viver o agora, fazendo sempre as mesmas coisas, sem pensar, do momento em que acordam até a hora em que vão dormir. Levantam pelo mesmo lado da cama, escovam os dentes sincronicamente, abrem a porta do carro e vão trabalhar com a mesma atitude de sempre. A disciplina torna-se dependência, e a pessoa vive em uma prisão disfarçada, em que ela acha que é livre, e que um dia encontrará a felicidade. Na verdade, essa automatização é uma forma de alienação, sobretudo no poker.

Por tudo isso, aproveite a oportunidade de jogar poker e esteja atento ao que esse verdadeiro simulacro da vida tem a ensinar. Entenda que sua postura ao jogar e interagir nos feltros é reflexo da maneira com que você vem levando a vida. Ao que parece, Morpheus estava certo ao dizer que “há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”. Em outras palavras, livre-se de suas programações e aja com consciência.




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