EDIÇÃO 31 » COMENTÁRIOS E PERSONALIDADES

Estrada Lamacenta, o Retorno

Coloque a garota no chão!


John Vorhaus

Não é o tempo todo, mas, de vez em quando, jogando poker, alguém vai me reconhecer como o cara do Killer Poker e me fazer uma pergunta ou outra sobre o poker, a vida, a escrita ou qualquer outra coisa. Às vezes essas perguntas podem ser bem maliciosas, como: “Se você é tão inteligente, por que não é rico?” ou “Diga, JV, aonde foram todas as suas fichas?” Por vezes, contudo, a discussão pode ser profunda, como aconteceu recentemente, quando alguém me perguntou: “Sob a perspectiva do poker, qual é a coisa mais importante que você sabe?”

Eu devo ter respondido longamente usando algo do meu repertório padrão, como: “Não jogue com mãos ruins” ou “Faça slowplay com ases e irá para o inferno”. Mas a pergunta ficou comigo, e hoje eu passei um pente fino na minha mente de poker e nos meus arquivos, buscando uma resposta melhor do que simplesmente: “Boas cartas, bom; cartas ruins, ruim”. Depois de certa reflexão e pesquisa, cheguei a uma conclusão familiar: o koan da estrada lamacenta. Essa tem sido, e continua sendo, a sabedoria do poker mais útil que já cruzou meu caminho, um verdadeiro antídoto para o tilt.

Koans, se você não sabe, são histórias ou parábolas Zen. Elas não têm a intenção de nos dizer exatamente o que pensar, mas de dar direção a nossos pensamentos ou meditações. (É por isso que os zen budistas perguntam qual é o som de uma única mão aplaudindo; você sempre vai se perguntar, mas nunca vai saber). Esse koan nos foi trazido por Tanzan, monge budista japonês do século XIX, professor de filosofia da Universidade Imperial. Eu já escrevi sobre esse tema e o reeditei muitas vezes, então, se você já leu isso antes, por favor aceite minhas desculpas pela repetição. Mas, mesmo que você já tenha lido antes, eu lhe encorajo a ler de novo, pois outro filósofo, Heráclito, afirmou: “Não se pode banhar-se duas vezes o mesmo rio”, ou seja, o jogador de poker que você é hoje não é o jogador que você foi um dia, e mesmo informações já conhecidas podem ter um novo significado, devido às mudanças pelas quais você passou desde que as descobriu.



Eis, então, de forma levemente parafraseada, A Estrada Lamacenta.

Tanzan e Ekido caminhavam juntos na chuva por uma estrada lamacenta. Numa curva da estrada, eles se depararam com um pequeno e ligeiro córrego, onde se encontrava uma jovem moça, que, vestindo um longo quimono, chorava.

“Por que choras?” perguntou Tanzan.

Em meio às lágrimas, a garota explicou que precisava estar em um casamento num vilarejo do outro lado do córrego, mas atravessar a correnteza significaria arruinar seu quimono e, não precisa nem dizer, sua entrada.

“Vamos lá, garota”, disse Tanzan. Com isso, ele a pôs nas costas, atravessou com dificuldade o riacho e a colocou do outro lado — segura, seca e feliz. Ela então foi ao casamento, possivelmente para pegar o buquê ou se embriagar. Tanzan e Ekido seguiram pela estrada.

Ekido se conteve até aquela noite, quando chegaram a um templo alojamento. Então, ele não mais conseguiu se segurar. “Nós monges não nos aproximamos de mulheres”, ele disse a Tanzan, “em especial mulheres jovens e belas. É perigoso e nossa ordem proíbe. Mesmo assim, você carregou aquela moça através do córrego. Por que você a carregou?”

“Eu deixei a moça no riacho”, respondeu Tanzan. “Por que você ainda está a carregá-la?”

Esse koan nos ensina a estratégia vital do poker do desapego. Quando nós temos azar ou sofremos bad beats, ficamos diante de uma escolha crítica: podemos conservar os sentimentos negativos que esses resultados trazem ou podemos simplesmente... seguir... adiante. Tanzan nos mostra que seguir adiante é uma questão de desapego daquilo que não é importante. Se não fizermos isso, se nos apegarmos aos maus sentimentos, iremos necessariamente prejudicar nossa percepção, denegrir nosso processo de tomada de decisões e deixar de jogar um poker perfeito.

Você flopa o top pair com top kicker e vai com tudo contra um único oponente, que acerta um de dois outs e lhe derrota. Você começa a arengar com seu oponente, o que tira sua paz, sua paciência e seu desempenho.

Coloque a garota no chão!

Você jogou um poker perfeito durante 10 horas desse torneio, e agora coloca seu dinheiro como favorito de 4-1 — na única vez a cada cinco em que a mão não se mantém. Você ainda tem fichas; você ainda tem equilíbrio?

Deixe-a ir!

Depois de horas andando pelo deserto das cartas, você finalmente recebe um par de ases, mas é derrotado por uma trinca flopada, o que lhe faz ter uma noite inteira de autopiedade.

Por que você ainda a está carregando?



Veja, todo mundo se depara com maus resultados, e todo mundo tem sentimentos negativos. Jogadores inteligentes e conscientes reconhecem tais sentimentos e seguem em frente. Jogadores fracos, escravos de suas emoções, nunca se desapegam, e pagam e pagam e pagam o preço desse vício emocional. Portanto, da próxima vez que tiver um mau resultado, há duas coisas que você pode considerar fazer. Primeiro, contemple por que alguém ficaria preso a um estado mental negativo. Eu não estou dizendo que você faz isso, mas muitos jogadores sentem certo prazer perverso ao serem derrotados repetidamente. É o combustível de seus destinos fatalistas: é claro que eles não ganharam; o universo os odeia. Isso se chama rolar na lama da dor, meus amigos. Eu sugiro que você não faça isso.

Depois, tendo deixado de lado seus sentimentos negativos — tendo parado de carregar a garota, como diria Tanzan — pare um pouco para reexaminar seu jogo naquela mão e ver o que você poderia ter feito melhor, pois há uma diferença entre se desapegar de maus sentimentos e ignorar informações úteis. Se você tiver cometido um erro — digamos que não tenha apostado o suficiente para proteger aquele maldito par de ases — você precisa estudar o erro, aprender com ele e então seguir em frente. Em outras palavras, desapegar-se dos sentimentos, mas não da lição.

Anos atrás, em um periódico que já não mais circula, dei a seguinte dica: Recorte o koan da estrada lamacenta. Guarde-o na sua carteira. Mantenha-o consigo e o releia com frequência até memorizá-lo. Eu segui meu próprio conselho e ainda o carrego — se você me assaltar em um estacionamento, encontrará uma cópia esfarrapada da Estrada Lamacenta onde deveria estar meu dinheiro. Sugiro que você siga esse conselho também. Medite sobre o koan. Use-o como ele foi pensado (não por Tanzan, mas certamente por mim), como uma eficaz defesa contra o tilt. Tanzan deixou a garota no rio. Eu não vejo razão por que nós ainda temos que carregá-la.


John Vorhaus é escritor profissional e autor de livros de poker. Ele pode ser encontrado no ciberespaço no endereço radarenterprizes.com.




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