EDIÇÃO 22 » COLUNA NACIONAL

A mais tênue das linhas

Calls Marginais


Leo Bello

O que separa uma jogada genial de uma tremenda burrada? O que talvez pareça um call horrível poderia ser, na realidade, fruto de análise estruturada e cálculo de risco?

São perguntas muito difíceis de responder sem que coloquemos nossa cabeça pra pensar. Para esse mês, eu já tinha em mente que ia escrever sobre uma situação que tenho visto se repetir nas fases avançadas de torneios: pagar all-in com par pequeno na mão. E, enquanto pesquisava para o artigo, acabei encontrando algumas jogadas que se enquadravam no que era meu principal objetivo: dicutir calls marginais.

O poker é composto de três ações básicas: fold, call e bet – nesta última, a aposta pode ter sido iniciada por você ou colocada sobre a aposta de um adversário (reraise).

No livro “Aprendendo a Jogar Poker”, falei sobre a importância de saber dar um bom fold. Até mesmo afirmei uma verdade absoluta no poker: os jogadores que dão call demais, costumam ser doadores de fichas (calling stations, ou pagadores). São aqueles que tentam acertar seus flushes e sequências, e perdem muitas fichas quando isso não acontece; ou ainda, que acham que top pair com um kicker bom justifica dar call com qualquer aposta. É contra esses jogadores que ganhamos dinheiro.

No mesmo livro, ensinei vários motivos para apostar e dar raise, inclusive dividindo as razões que devem motivar uma aposta. Em outras palavras, qual intenção você tem ao realizar determinado tipo de aposta.
Mas falei pouco sobre dar call. E hoje em dia percebo que é como um tripé, pois não adianta saber apostar muito bem e largar nas horas certas se você não souber a hora correta de pagar uma aposta. Seja ela um grande all-in ou uma aposta no flop em que você tem que decidir se dá call ou não, já vá pensando o que fazer no turn caso sua carta apareça ou não. Pagar e avaliar depois, neste caso, é incorreto. É preciso ter ao menos um plano traçado para cada call executado, antes e depois do flop.

Pré-flop, você deve identificar as forças e as fraquezas das cartas que segura, qual tipo de ação você quer e a situação ideal para cada tipo de jogo. Jogar com AA é mais fácil, claro. Mas mesmo mãos mais fracas têm condições de ser vencedoras, uma vez que as condições estejam próximas da perfeição.

Com isso, quero dizer que a hora certa para aplicar um blefe com quaisquer duas cartas depende da sua posição, do seu stack e o dos oponentes, da imagem na mesa, do momento no torneio e dos próprios adversários. 

O jogador completo deve dominar a arte de apostar, largar e saber a hora correta de pagar apostas. O grande problema é que a curva de aprendizado é bastante curiosa no poker: no início, você dá call em mãos demais (e também joga muitas mãos). É preciso aprender a ficar tight e não pagar tantas apostas.  Depois, quando você já tiver bastante experiência, precisa soltar seu jogo. E aí vem parte do problema: conheço jogadores que passaram pela primeira fase e depois, ao entrar na segunda, se perderam. Eles acham que os conceitos do poker estão bem fundamentados e começam a fazer calls inacreditáveis, injustificáveis do ponto de vista da análise da mão.

Nessas horas, lembro do excelente livro do Gus Hansen, “Every Hand Revealed”, em que ele narra sua vitória no Aussie Millions de 2007, mão a mão. Tínhamos uma imagem do Gus Hansen como um jogador extremamente loose, e que jogava quaisquer duas cartas. Ao ler essa obra, percebemos que ele ataca com quaisquer duas cartas, mas seus calls são altamente embasados na sua percepção de jogo, e sempre com muita segurança. Recomendo a leitura.

Um dos pontos que queria abordar é sobre o valor de pares pequenos ao dar call. A grande maioria dos leitores já deve ter percebido que o ponto forte dos pares médios e pequenos é a chance de acertar uma set no flop, e a partir daí conseguir ganhar um pote realmente grande. Isso é indiscutível.

Agora, para dar call pré-flop buscando acertar uma set, algumas condições devem existir. A aposta do adversário deve ser menor que 1/8 do stack efetivo em jogo. Ou seja, para valer a pena, você tem que ter chances de ganhar nesta mão oito vezes mais fichas do que investiu pré-flop. Isso, porque você sabe que só conseguirá uma set aproximadamente uma a cada oito vezes que pagar. Portanto, se não conseguir extrair essa quantidade na vez que acertar, estará perdendo dinheiro no longo prazo. Além disso, é necessário entender se a situação é propícia para conseguir tantas fichas (adversário agressivo, com um jogo que justifique colocar tantas fichas no pote).

Porém, o que tenho visto acontecer são as pessoas dando call com pares pequenos, em apostas às vezes grandes como all-ins, comprometendo boas partes dos seus stacks com base em um conceito errado. O pensamento corrente é que um par contra cartas maiores e não pareadas (overcards) é um coin flip, portanto, você tem cerca de 50% de chances de ganhar, e isso justificaria o call.

Embora a afirmação possa ser verdadeira se analisada em uma calculadora de mãos, ela não leva em consideração os fatores que tornam este tipo de call que chamamos de marginal ou – em português claro – um call bem ruim.

Quando um jogador vai all-in, ele pode estar nas seguintes situações: com um jogo muito forte; um jogo mediano, mas com um stack relativamente pequeno; ou, em raras ocasiões, com um jogo muito fraco e indo all-in blefando ou tentativa desesperada de dobrar.

Se não olharmos para os stacks no início da mão, a situação que se mostra é que o par pequeno está muito atrás dos jogos fortes; atrás ou empatando com os jogos medianos; e na frente apenas dos blefes, como alguém indo all-in com Q7. Porém, mesmo nesse caso a situação é precária, pois o mais leve dos blefes costuma estar quase empatado com o par pequeno.

Colocando desta forma, vemos o grande erro que pode ser um call com um par pequeno – e a cada dia vejo mais pessoas cometendo este deslize. A argumentação de que é um coin flip é bem ruim, pois, ao dar call, não estamos buscando uma situação de 50-50.

Será que dá pra perceber a diferença entre ir all-in com um par pequeno, receber um call e entrar num coin flip? Nesse caso, colocar todas as suas fichas no meio é uma boa jogada, pois você não está apenas contando com o coin flip, e sim com o valor adicional do fold do adversário: a porcentagem de vezes que os adversários dão fold quando você empurra suas fichas é o que justifica as vantagens de usar esse par pequeno para essa jogada.

Entretanto, ao dar call, você perde essa vantagem, e conta com uma situação em que está ou muito atrás ou num coin flip. Faz sentido?

Essa é a primeira das situações que considero “call marginal” – e veja que nem falei dos stacks. É claro, se você estiver com muito mais fichas do que o adversário, esse call pode se justificar por outros motivos, mas, mesmo assim, a situação das suas chances não se modifica. Portanto, aprender a dar call com pares pequenos é uma questão de saber que o grande valor deles está em acertar uma set, ou então em tentar um blefe pós-flop.

Fuja dos calls marginais. A sensação quando você consegue segurar um coin flip com um par pequeno pode ser boa, mas na grande maioria das vezes é um prêmio para uma jogada ruim.

Só que os calls marginais não devem ser considerados apenas como aqueles realizados com jogos inadequados. Os pagamentos desproporcionais ao pote também podem ser bastante questionáveis. Um exemplo aconteceu durante o torneio Floripa 100K, realizado em abril de 2009. Leandro Brasa, meu sócio e amigo, e indiscutivelmente um dos melhores jogadores do país, além de profissional do Full Tilt Poker (novo patrocinador do BSOP, junto com o BestPoker) foi o protagonista da mão que vou comentar.

Estávamos no segundo dia do torneio, e o Brasa havia começado como vice-chip líder, com cerca de 380.000 em fichas.  Os 20 primeiros ficariam in the money (depois de um acordo, 21 jogadores seriam premiados), e o dia tinha começado com 29 sobreviventes. No início do dia, do 15º colocado para baixo, todos tinham aproximadamente um quarto das fichas de Brasa (cerca de 100.000).

Acontece que ele, antes da mão em questão, havia perdido cerca de 100.000 fichas, e o torneio estava na bolha. Com esse cenário, Brasa acaba se envolvendo em uma mão que, sem entrar em detalhes sobre como foi a ação pré-flop (não é importante nesse momento), tínhamos um pote de 30.000 e um bordo com 9-6-2 sendo duas cartas de copas, além de um all-in de 194.000 fichas do adversário. Sem saber o que os adversários têm na mão, mas olhando para os stacks e para a situação, vemos que o call parece improvável – exceto se ele tivesse um jogo muito forte como uma set ou um AA.

Um jogador iniciante, com um top pair apenas, poderia fazer o call, querendo não ser empurrado para fora da mão. Um que estivesse aprendendo teoria se afastaria dessa mão devido à overbet. Mas um profissional que já está raciocinando em um terceiro nível pensa na jogada, tentando analisá-la estruturalmente. O problema nesse caso é o “overthinking”, ou as vezes em que, por pensarmos demais, arrumamos uma desculpa pra dar o call marginal.

No caso, Brasa começou revendo mentalmente a mão. Ele havia aumentado pré-flop, depois de o adversário ter dado limp, e o oponente apenas chamou. Nessa situação, ele eliminou pares altos do range do adversário. Em um flop com duas cartas de copas e chance de sequência para 78, ele achava que apenas com draws (pedidas) o oponente iria all-in. Descartou blefes também. Se tivesse o par do meio ou top pair, pensou que ele tentaria o check-raise. E também achou que o oponente estaria tentando jogá-lo para fora da mão. Com todos esses fatores reunidos, Brasa resolveu dar call, pois tinha Q9 – top pair, portanto. Considerando que o range do adversário deveria ser formado por draws, ele estava à frente.

Antes de caminharmos na análise, vamos pensar: se fosse realmente um draw contra o seu top pair, justificaria arriscar dar call em uma aposta de quase 200.000 em um pote de 30.000? Esse call é marginal? A justificativa aqui advém do modo de pensar de quem deseja ganhar o torneio. Ele queria conseguir o máximo em fichas para poder continuar dominando a mesa e ter boas chances de ficar em primeiro. A análise estruturada da mão fez pensar que ele estava na frente. Overthinking. Call marginal.

Para não deixar os leitores em suspense, o oponente tinha A9 e ganhou a mão, tendo ido all-in com top pair. Brasa não considerou essa hipótese. A questão aqui não é o certo ou o errado, mas sim discutirmos sobre calls. Esse tipo de pagamento faz o Brasa ganhar torneios, mas às vezes tem o efeito oposto. Ele fundamenta sua análise.

O quanto disto é pensar demais sobre uma mão? O quanto analisar demais uma situação simples, “contra essa overbet, um call com top pair é errado, pois, com duas cartas por vir, overcards podem ser suficiente para ganhar da sua mão” – AK, por exemplo.

Fazer um belo call depende de conceitos bem fundamentados. Comece pelo simples: a) pense se ele faz sentido diante da situação do jogo; b) analise o potencial das suas cartas (força da sua mão) e que jogos você pode acertar (set, sequência, flush, etc); c) veja o tamanho da aposta que você está enfrentando e com que futuras apostas terá que lidar, d) estime o range do adversário. Agora se lembre dessa ordem. Não comece pelo mais difícil.

Poker é um equilíbrio entre fazer o simples e o complicado: o importante é saber descomplicar usando o raciocínio. Na dúvida, siga o instinto e faça o óbvio: lembre-se que a tríade “call, bet e fold” anda de braços dados.




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