EDIÇÃO 100 » COLUNA NACIONAL

Anatomia da Falinha


Daniel Mendonça
Última mão do Main Event da WSOP de 1998. Scott Nguyen anuncia all-in no bordo 9-9-8-8-8 e segundos depois diz: “You call and will be all over, baby”, erguendo uma garrafa de cerveja como se brindasse antecipadamente à própria vitória. Do outro lado da mesa Kevin McBride, confuso com a jogada e desnorteado pelo comentário do oponente, ainda tenta transparecer confiança antes de dizer “I call. I play the board”, mas antes que pronuncie a última sílaba o J-9 de Nguyen já está inapelavelmente aberto na mesa.
 
Pode-se dizer com razão que as frases “I call” e “I play the board” não costumam trazer bons resultados quando ditas em sequência, mas o que esse episódio mostra de importante é como a falinha, aparentemente um elemento menor do poker, pode mudar a história de uma mão e, consequentemente, de um torneio.
 
É notório que grandes torneios de poker buscam limitar as falinhas para que não se prejudique a esportividade, mas, para alegria de muitos, em torneios menores elas são mais toleradas, e em home games praticamente obrigatórias. Para muitos jogadores, poker sem falinha seria algo como MMA sem encarada, NHL sem pancadaria, Fórmula 1 sem acidente. É tão parte da identidade do jogo que nos clubes até os dealers não resistem e eventualmente soltam uma e outra. 
 
Certamente o mercado editorial do poker ainda está devendo um Guia Prático de Falinhas, mas por ora alguns princípios gerais podem ser enunciados. 
 
O Princípio Fundamental da Falinha estabelece que existem falinhas por valor ou por blefe. As falinhas por valor visam única e exclusivamente manter um clima amistoso e bem-humorado à mesa. Já as falinhas por blefe envolvem mais a estratégia do jogo em si, pois têm o objetivo de, por meio de técnicas de psicologia reversa, confundir e levar o adversário ao erro. 
 
Especialistas em falinhas, sob a condição de não ter suas identidades divulgadas, fizeram para esta coluna uma breve análise de algumas das falinhas mais comuns. Confira a seguir:     
 
“Vou all-in pra ir embora”: geralmente enunciada quando o autor da falinha segura QQ+ ou AK, é muito utilizada por falsos malandros em busca de um call marginal. Alguns regulares, ao perceber que quase ninguém cai mais nessa armadilha, passaram a usá-la com mãos fracas. Como também essa inversão tornou-se bastante comum, alguns jogadores mais avançados passaram a utilizar novamente essa falinha com monstros, para que o adversário pense que ele pensa que o outro pensa que está invertendo o sentido geral da falinha. Especialistas no assunto dizem haver atualmente um forte metagame de falinhas.
 
“Vou pagar pra te ajudar”: pesquisadores do poker ficaram intrigados ao descobrir que 75% das vezes que alguém paga “para ajudar” acaba levando o pote. Mas a explicação dos especialistas em falinhas ajuda a desvendar o mistério. Ocorre que o range associado a essa falinha é bastante forte, algo em torno de 99+ e AJs+, enfrentando um range fraco de algum short desesperado. A intenção por trás dessa falinha ainda é uma incógnita, mas cogita-se que ela tenha o objetivo de passar uma imagem benevolente e simpática do jogador – o efeito costuma ser o contrário, mas a hipótese é válida mesmo assim.
 
“Era tudo meu...”: sem dúvida a falinha mais usada por amadores em torneios semanais de clube. Muito proferida por quem adora ver um flop e se ressente a cada vez que descarta um J5 que completaria uma sequência no river, um A4o que faria um flush em A, etc. Com frequência presencia-se o colega ao lado lamentando baixinho que “fulava no flop” com seu T3o, o que nos faz pensar que jogar 100% das mãos pode ser uma estratégia lucrativa, porque, afinal, “uma hora bate”.
 
Nossos especialistas sugerem uma estratégia equilibrada para torneios: no início utilize um range balanceado de falinhas, priorize falinhas com valor de showdown, e aos poucos vá se soltando mais; quando chegar a hora do ante de 1000, evite o trocadilho “Mil meu, co’mil seu...”; na mesa final evite pedir desculpas depois da bad beat, já que pedido de desculpas depois da bad é considerado falinha non grata.
 
Por fim, é preciso dizer que o limite da falinha é delimitado por acordos tácitos, ou seja, o limite não está dito, mas está posto. O bom senso, a experiência e principalmente a dimensão daquele jogo específico vão dizer quão longe se pode ir com as falinhas, pois estas são, antes de tudo, um código de convivência. De todo jeito, convém não subestimar o poder da falinha. Casamentos já foram desfeitos por causa de uma falinha. Consta que Amarillo Slim escapou da morte ao soltar uma falinha a Pablo Escobar. São tantos episódios do tipo que não seria exagero dizer que é mais fácil imaginar o poker sem cartas e fichas do que sem falinhas.
 
Que assim seja.



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