Especiais » Era uma vez no pano

Na Estrada com o Mão Seca

Um conto de Pedro Nogueira



25/03/2013
» comente

São quase três horas da manhã e estou na porta do Paradiso recapitulando todos os pecados que cometi nos últimos anos, pois só eles podem explicar o castigo que Deus me deu naquela noite ao bater um river de quatro outs para Alfredo, o Alfaiate. A broca do lazarento custou nada menos do que 2k para mim, e pior ainda do que perder o pote foi ouvir ele comemorando assim: "Deus ajuda os artistas! Deus ajuda os artistas!" Essa história de que alfaiate é artista é uma novidade para mim. Então, antes que eu perdesse a calma e aplicasse uma chave de rim no Alfredo, decidi sair para fumar um cigarro na varanda do clube, que fica ali na João Cachoeira, quase na esquina com a Leopoldo Couto de Magalhães Júnior.

Bem, posso dizer que essa não foi uma decisão feliz, porque quem eu encontro na porta no Paradiso senão o Mão Seca, um partido com o qual não tenho interesse algum em me meter. O Mão Seca é chamado assim pois ele é um agiota, e dizem que a sua mão seca o bolso de qualquer cidadão que pega algum tomate emprestado com ele. A parceirada da noite costuma evitar a sua companhia. Mas o Mão Seca é velhaco, então frequenta os clubes bem no fim da madrugada, quando os parceiros estão quebrados e desesperados para recuperar o prejuízo. Nessas horas, já vi sujeitos tão inteligentes quanto o Pedrinho Mídia passando um vale para o Mão Seca. O ferro é uma coisa complicada.

O Mão Seca é um homem alto, e com os braços fortes, e com muitas tatuagens desgastadas da época do colégio, onde ficou durante três anos por explodir um caixa eletrônico. É claro que esse porte sólido é uma boa arma na hora de cobrar o vale da parceirada, porque qualquer cara sensato pensaria três ou quatro vezes antes de entrar num embate corporal com o Mão Seca. E não bastasse o seu tamanho, ele sempre anda com uma navalha no bolso e o velho equalizador guardado no porta-luvas do carro.

Outro detalhe que joga a seu favor é o rosto feio, capaz de assustar até mesmo uma quadrilha de ladrões de cavalos. Ele tem uma sobrancelha grossa, e dois olhos profundos, e um sorriso extremamente amarelo, e uma cicatriz longa da testa até o queixo. Quem vê aquele rosto sabe que aquele é um homem vivido.

Por mais que eu não veja porcentagem alguma em conversar com o Mão Seca, dou um largo olá para ele, pois esse é o tipo de sujeito que não quero ver chateado comigo. Então o Mão Seca me segura pelo ombro e diz assim: "Imagine você, Nogueira, que o Juninho Pizzaiolo está me devendo 7K desde o mês passado e não atende mais as minhas ligações", o Mão Seca diz. "Mas acabei de receber a dica de que ele engatou num Omaha capado de $25-$50 ali no Automóvel Clube de São José do Rio Preto. Se ele tá com bala para engatar num jogo desses, é bom que tenha bala para me pagar."

Se existe um negócio que nunca concordei, e nunca vou concordar, é a desonestidade. Portanto fico realmente decepcionado com o Pizzaiolo ao saber que ele anda negligenciando as dívidas, mesmo elas sendo com um partido de caráter duvidoso como o Mão Seca.

Mas meu coração quase para de bater quando o velho agiota vira para mim e diz assim: "Já que você quebrou hoje, Nogueira, vai comigo para Rio Preto atrás do Pizzaiolo." Bem, fico realmente acelerado quando ouço isso, porque não está em meus planos percorrer 500 quilômetros para cobrar uma dívida que nem é minha. E muito menos na companhia de um homem maquinado como o Mão Seca. Se os gendarmes nos param na estrada, até eu explicar que não sou um cúmplice do bandido, mas apenas um parceiro convocado à força para essa viagem indigesta, já terão me cimentado no parque do colégio.

Contra a minha vontade entro no carro do Mão Seca, pois não quero deixar um homem de 1,90 metro com uma navalha no bolso achando que não prezo por sua companhia. E lá vamos nós para Rio Preto, onde chegamos depois de quase cinco horas de estrada. Então são oito da manhã quando batemos na porta do Automóvel Clube, um lugar pomposo e elegante na avenida principal da cidade. Eu diria que, quando o Mão Seca mostrou o velho equalizador ao porteiro quando este pediu para ver nossa carteira de sócio, por um triz ele não causou um derrame em duas senhoras que passeavam com seus cachorrinhos ali por perto. Bem, o porteiro certamente nos deixou passar e nos deu instruções bem claras, apesar da tremedeira, de como chegar à sala do carteado.



Quero deixar registrado aqui que nunca vi um fantasma na minha vida, e espero nunca ver um. Mas se por acaso isso vier a acontecer, imagino que a expressão no meu rosto será igual à do Pizzaiolo ao ver o Mão Seca entrando no salão do Automóvel Clube. Só que, para o meu espanto, o Mão Seca não chegou criando confusão. Pelo contrário, foi discretamente até a moça do caixa, tirou um maço de notas azuis do bolso e pediu uma cadeira ao lado do dealer, afirmando que enxergava mal e que aquele lugar privilegiava a visão das cartas. Seu pedido, como de costume, foi atendido, e ao sentar à mesa ele foi logo perguntando ao Pizzaiolo: "Para frente ou no ferro?"

O Pizzaiolo, mais vermelho e enrugado do que um tomate seco, respondeu envergonhado: "Tô 9K para trás." Bem, aquela era uma posição delicada para o Pizzaiolo, devendo uma bala para a mesa e outra para um agiota violento. Mas eis que, súbito, as cartas pareceram se solidarizar com a situação dele e todos os rivers começaram a bater em sua favor. Em menos de uma hora, ele já estava 7K para frente, exatamente o valor de sua dívida com o Mão Seca. E foi nesse momento que o agiota se levantou, pediu licença para a parceirada e fez um sinal para o Pizzaiolo fazer o mesmo. Os dois trocaram as fichas por dinheiro no caixa e fomos até o estacionamento do clube, onde o Pizzaiolo quitou o seu vale.

Devo notar que o Pizzaiolo foi realmente abençoado por aquele chorrilho tardio, pois o Mão Seca é famoso por esculpir a orelha dos cidadãos que não honram suas dívidas com ele. Então na viagem de volta, lá pelo quilômetro 270, fiz esse comentário. No que o velho agiota respondeu: “E você acha mesmo que foi obra do destino aquele monte de river bater para o Pizzaiolo depois de eu sentar na mesa? A não ser que o destino se chame Mão Seca, não foi."



"Eu realmente não estava disposto a ver o meu tomate parar na carteira daqueles fazendeiros e almofadinhas de Rio Preto”, o Mão Seca diz. "Então encostei minha navalha na barriga do dealer e avisei que, caso o Pizzaiolo terminasse o jogo no ferro, ele precisaria mudar de profissão, porque é um bocado difícil distribuir cartas e contar fichas com dois olhos furados", continuou. “Sorte do Pizzaiolo e do resto da parceirada que o dealer era um homem sensato, pois tivesse terminado o jogo de outra maneira, eu teria esculpido hoje mais orelhas do que um jardineiro francês”.


Pedro Nogueira

Após algumas sessões de regressão, este jornalista descobriu que viveu na Nova York dos anos 20 em sua vida anterior. Sua única preocupação era saber a linha de frente da próxima corrida de cavalos e o endereço de um salão de bilhar para passar as noites frias. Ele também é editor-chefe do site www.elhombre.com.br


Leia Também



A CardPlayer Brasil™ é um produto da Raise Editora. © 2007-2024. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.

Lançada em Julho de 2007, a Card Player Brasil reúne o melhor conteúdo das edições Americana e Européia. Matérias exclusivas sobre o poker no Brasil e na América Latina, time de colunistas nacionais composto pelos jogadores mais renomados do Brasil. A revista é voltada para pessoas conectadas às mais modernas tendências mundiais de comportamento e consumo.


contato@cardplayer.com.br
31 3225-2123